— Mando ver, é aqui perto, propôs Sofia.

— Vamos nós mesmas. Que tem? Já pensei em uma coisa. Valerá a pena conservar a casa pronta e alugada, quando a cura pode prolongar-se? Melhor é deixá-la, vender os trastes e apurar o que houver.

Foram a pé do Flamengo à Rua do Príncipe, três a quatro minutos. Raimundo estava na rua, mas viu gente à porta e veio abri-la. O interior da casa tinha a feição do abandono, sem a fixidez e regularidade das coisas, que parecem conservar um resto da vida interrompida; era o abandono do desmazelo. Mas, por outro lado, o transtorno dos móveis da sala exprimia bem o delírio do morador, suas idéias tortas e confusas.

— Ele foi muito rico? perguntou D. Fernanda a Sofia.

— Tinha alguma coisa, respondeu esta, quando chegou de Minas; mas parece que estragou tudo. Olhe, levante o vestido que o chão parece que não se varre há um século.

Não era só o chão; os trastes tinham a crosta da incúria. Nem por isso o criado explicava nada; olhava, escutava, e, baixinho, assobiava uma polca do dia. Sofia não lhe perguntou pelo asseio; estava morta por fugir "daquela imundice", dizia a si mesma, e tinha vontade de indagar do cão, que era o principal motivo da visita; mas, não queria mostrar interesse por ele nem pelo resto. A trivialidade daquilo tudo não lhe dizia nada ao espírito nem ao coração; a lembrança do alienado não a ajudava a suportar o tempo. De si para si achava a companheira singularmente romântica ou afetada. "Que bobagem!" ia pensando, sem desconcertar o sorriso aprovador com que acudia a todas as observações de D. Fernanda.

— Abra aquela janela, disse esta ao criado; tudo cheira a mofo.

— Oh! insuportável! acudiu Sofia, respirando com asco.

Mas, apesar da exclamação, D. Fernanda não se resolveu a sair. Sem que nenhuma recordação pessoal lhe viesse daquela miserável estância, sentia-se presa de uma comoção particular e profunda, não a que dá a ruína das coisas. Aquele espetáculo não lhe trazia um tema de reflexões gerais, não lhe ensinava a fragilidade dos tempos, nem a tristeza do mundo, dizia-lhe tão-somente a moléstia de um homem, de um homem que ela mal conhecia, a quem falara algumas vezes. E ia ficando e olhando, sem pensar, sem deduzir, metida em si mesma, dolente e muda. Sofia não ousava articular nada, com receio de ser desagradável a tão conspícua dama. Tinham ambas os vestidos apanhados, para evitar a mácula da poeira; mas Sofia acrescentou a essa precaução a agitação viva, contínua e impaciente da ventarola, como pessoa que sufocasse naquela atmosfera. Chegou a tossir algumas vezes.

— E o cachorro? perguntou D. Fernanda ao criado.

— Está preso no quarto, lá dentro.

— Vá buscá-lo.

Quincas Borba apareceu. Magro, abatido, parou à porta da sala, estranhando as duas senhoras, mas sem latir; mal erguia os olhos apagados. Ia a dar meia-volta ao corpo na direção do interior da casa, quando D. Fernanda fez uns estalinhos com os dedos; ele parou, agitando a cauda.

— Como é mesmo que se chama? perguntou D. Fernanda.

— Quincas Borba, respondeu o criado, rindo, com a voz arrastada. Tem nome de gente. Eh! Quincas Borba! vai lá! a senhora está chamando.

— Quincas Borba! vem cá! Quincas Borba! repetiu D. Fernanda.

Quincas Borba acudiu ao chamado, não pulando, nem alegre. D. Fernanda inclinou-se, perguntou-lhe pelo amigo, se estava longe, se queria ir vê-lo. Assim mesmo inclinada, interrogava o criado sobre o trato do cão.

— Agora come, sim, senhora; logo que meu amo foi embora, não queria comer nem beber; eu até pensei que estivesse danado.

— Come bem?

— Come pouco.

— Procura pelo senhor?

— Parece que procura, respondeu Raimundo tapando o riso com a mão; mas eu tranquei ele no quarto, para não fugir. Já não chora; a princípio chorava muito, que até me acordava... Era preciso eu bater com um cacete na porta e gritar, para ele sossegar...

D. Fernanda coçava a cabeça do animal. Era o primeiro afago depois de longos dias de solidão e desprezo. Quando D. Fernanda cessou de acariciá-lo, e levantou o corpo, ele ficou a olhar para ela, e ela para ele, tão fixos e tão profundos, que pareciam penetrar no íntimo um do outro. A simpatia universal, que era a alma desta senhora, esquecia toda a consideração humana diante daquela miséria obscura e prosaica, e estendia ao animal uma parte de si mesma, que o envolvia, que o fascinava, que o atava aos pés dela. Assim, a pena que lhe dava o delírio do senhor, dava-lhe agora o próprio cão, como se ambos representassem a mesma espécie. E sentindo que a sua presença levava ao animal uma sensação boa, não queria privá-lo de benefício.

— A senhora está-se enchendo de pulgas, observou Sofia.

D. Fernanda não a ouviu. Continuou a mirar os olhos meigos e tristes do animal, até que este deixou cair a cabeça e entrou a farejar a sala. Sentira o cheiro do senhor. A porta da rua estava aberta; ele teria fugido por ela, se Raimundo não acudisse a prendê-lo. D. Fernanda deu algum dinheiro ao criado para que o fosse lavar e conduzir à casa de saúde, recomendando-lhe o maior cuidado, que o levasse ao colo, ou preso por um cordão. Nesta parte acudiu também Sofia, ordenando que a procurasse antes, em casa.