Rubião fez os dois empréstimos e o negócio. O negócio era uma Empresa Melhoradora dos Embarques e Desembarques no Porto do Rio de Janeiro. Um dos empréstimos tinha por fim pagar certa conta atrasada de papel da Atalaia, dívida urgente. A folha estava ameaçada de parar.
— Perfeitamente, disse Camacho, quando Rubião lhe foi levar o dinheiro à casa. Muito obrigado. Veja você como, por uma miséria desta ordem, podia emudecer o nosso órgão. São os espinhos naturais da carreira. O povo não está educado; não reconhece, não apóia os que trabalham por ele, os que descem à arena todos os dias em defesa das liberdades constitucionais. Imagine que, de momento, não dispúnhamos deste dinheiro, tudo estava perdido, cada um ia para os seus negócios, e os princípios ficavam sem o seu leal expositor.
— Nunca! protestou Rubião.
— Tem razão; redobraremos de esforços. A Atalaia será como o Anteu da fábula. De cada vez que cair, erguer-se-á com mais vida.
Dito isto, Camacho mirou o maço de notas. Um conto e duzentos não? perguntou; e meteu-o no bolso do fraque. Continuou a dizer que estavam seguros agora, a folha ia de vento em popa. Tinha certas reformas materiais em vista; foi ainda mais longe:
— Precisamos desenvolver o programa, dar um empurrão aos correligionários, atacá-los, se for preciso...
— Como?
— Ora, como? atacando. Atacar é um modo de dizer; corrigir. É evidente que o órgão do partido está afrouxando. Chamo órgão do partido, porque a nossa folha é órgão das idéias do partido; compreende a diferença?
— Compreendo.
— Vai afrouxando, continuou Camacho apertando um charuto entre os dedos, antes de o acender; nós precisamos de acentuar os princípios, mas francamente, nobremente, dizendo a verdade. Creia que os chefes precisam ouvi-la a seus próprios amigos e aderentes. Nunca rejeitei a conciliação dos partidos, pugnei por ela; mas conciliação não é jogo de empulha. Para lhe dar um exemplo, na minha província a gente dos Pinheiros tem o apoio do governo, unicamente para me deslocar; e os meus correligionários da Corte, em vez de a combater, visto que o governo lhe dá força, que pensa que fazem? Dão também apoio aos Pinheiros.
— Têm ao menos alguma influência os Pinheiros?
— Nenhuma, respondeu Camacho fechando violentamente a caixa de fósforos que ia a abrir. Há um réu de polícia entre eles, e há outro que até foi aprendiz de barbeiro. Matriculou-se, é verdade, na Faculdade do Recife, creio que em 1855, por morte do padrinho que lhe deixou alguma coisa, mas tal é o escândalo da carreira desse homem que, logo depois de receber o diploma de bacharel, entrou na assembléia provincial. É uma besta; é tão bacharel como eu sou papa.
Entenderam-se sobre as modificações políticas da folha. Camacho lembrou ao Rubião que a candidatura deste naufragara por causa justamente da oposição dos chefes. De alguns, emendou logo. Rubião concordou; assim lho tinha dito o amigo em tempo, e a lembrança avivou o ressentimento do desastre. Podia, devia estar na Câmara. Os tais é que o não quiseram; mas haviam de ver, pensava Rubião; tinham de amargar o mal feito. Deputado, senador, ministro, vê-lo-iam tudo, com olhos tortos e espantados. A cabeça de nosso amigo, tanto que o outro lhe pôs a faísca, foi ardendo de si mesma, não por ódio, nem inveja, mas de ambição ingênua, de cordial certeza, visão antecipada e deslumbrante das grandezas. Camacho estimou achá-lo de acordo.
— A nossa gente é de igual opinião, disse ele. Creio que não faz mal uma pequena ameaça aos amigos.
Nessa mesma noite, leu-lhe o artigo em que advertia o partido da conveniência de não ceder às perfídias do poder, apoiando em algumas províncias certa gente corrupta e sem valor. Eis aqui a conclusão:
Os partidos devem ser unidos e disciplinados. Há quem pretenda (mirabile dictu!) que essa disciplina e união não podem ir ao ponto de rejeitar os benefícios que caem das mãos dos adversários. Risum teneatis! Quem pode proferir tal blasfêmia sem que lhe tremam as carnes? Mas suponhamos que assim seja, que a oposição possa, uma ou outra vez, fechar os olhos aos desmandos do governo, à postergação das leis, aos excessos da autoridade, à perversidade e aos sofismas. Quid inde? Tais casos, — aliás raros, — só podiam ser admitidos quando favorecessem os elementos bons, não os maus. Cada partido tem os seus díscolos e sicofantas. É interesse dos nossos adversários ver-nos afrouxar, a troco da animação dada à parte corrupta do partido. Esta é a verdade; negá-lo é provocar-nos à guerra intestina, isto é, à dilaceração da alma nacional... Mas, não, as idéias não morrem; elas são o lábaro da justiça. Os vendilhões serão expulsos do templo; ficarão os crentes e os puros, os que põem acima dos interesses mesquinhos, locais e passageiros a vitória indefectível dos princípios. Tudo que não for isto ter-nos-á contra si. Alea jacta est.