Na estação de Vassouras, entraram no trem Sofia e o marido, Cristiano de Almeida e Palha. Este era um rapagão de trinta e dois anos; ela ia entre vinte e sete e vinte e oito. Vieram sentar-se nos dois bancos fronteiros ao do Rubião, acomodaram as cestinhas e embrulhos de lembranças que traziam de Vassouras, onde tinham ido passar uma semana; abotoaram o guarda-pó, trocaram algumas palavras, baixo.

Depois que o trem continuou a andar, foi que o Palha reparou na pessoa do Rubião, cujo rosto, entre tanta gente carrancuda ou aborrecida, era o único plácido e satisfeito. Cristiano foi o primeiro que travou conversa, dizendo-lhe que as viagens de estrada de ferro cansavam muito, ao que Rubião respondeu que sim; para quem estava acostumado à costa de burro, acrescentou, a estrada de ferro cansava e não tinha graça; não se podia negar, porém, que era um progresso...

— Decerto, concordou o Palha. Progresso e grande.

— O senhor é lavrador?

— Não, senhor.

— Mora na cidade?

— De Vassouras? Não; viemos aqui passar uma semana. Moro mesmo na Corte. Não teria jeito para lavrador, conquanto ache que é uma posição boa e honrada.

Da lavoura passaram ao gado, à escravatura e à política. Cristiano Palha maldisse o governo, que introduzira na fala do trono uma palavra relativa à propriedade servil; mas, com grande espanto seu, Rubião não acudiu à indignação. Era plano deste vender os escravos que o testador lhe deixara, exceto um pajem; se alguma coisa perdesse, o resto da herança cobriria o desfalque. Demais, a fala do trono, que ele também lera, mandava respeitar a propriedade atual. Que lhe importavam escravos futuros, se os não compraria? O pajem ia ser forro, logo que ele entrasse na posse dos bens. Palha desconversou, e passou à política, às Câmaras, à guerra do Paraguai, tudo assuntos gerais, ao que Rubião atendia, mais ou menos. Sofia escutava apenas; movia tão-somente os olhos, que sabia bonitos, fitando-os ora no marido, ora no interlocutor.

— Vai ficar na Corte ou volta para Barbacena? perguntou o Palha no fim de vinte minutos de conversação.

— Meu desejo é ficar, e fico mesmo, acudiu Rubião; estou cansado da província; quero gozar a vida. Pode ser até que vá à Europa, mas não sei ainda.

Os olhos do Palha brilharam instantaneamente.

— Faz muito bem; eu faria o mesmo, se pudesse; por agora, não posso. Provavelmente, já lá foi?

— Nunca fui. É por isso que tive cá umas idéias, ao sair de Barbacena; ora adeus! é preciso a gente tirar a morrinha do corpo. Não sei ainda quando será; mas hei de...

— Tem razão. Dizem que há lá muita coisa esplêndida; não admira, são mais velhos que nós; mas lá chegaremos; e há coisas em que estamos a par deles, e até acima. A nossa Corte, não digo que possa competir com Paris ou Londres, mas é bonita, verá...

— Já vi.

— Já?

— Há muitos anos.

— Há de achá-la melhor; tem feito progressos rápidos. Depois, quando for à Europa...

— A senhora já foi à Europa? interrompeu Rubião, dirigindo-se a Sofia.

— Não, senhor.

— Esqueceu-me apresentar-lhe minha mulher, acudiu Cristiano. Rubião inclinou-se respeitosamente; e, voltando-se para o marido, disse-lhe sorrindo:

— Mas não me apresenta a mim?

Palha sorriu também; entendeu que nenhum deles sabia o nome um do outro, e deu-se pressa em dizer o seu.

— Cristiano de Almeida e Palha.

— Pedro Rubião de Alvarenga; mas Rubião é como todos me chamam.

A troca dos nomes pô-los ainda mais a gosto. Sofia não interveio, porém, na conversa; afrouxou a rédea aos olhos, que se deixaram ir ao sabor de si mesmos. Rubião falava, risonho, e ouvia atento as palavras do Palha, agradecido da amizade com que o tratava um moço que ele nunca tinha visto. Chegou a dizer-lhe que bem podiam ir juntos à Europa.

— Oh! eu não poderei ir nestes primeiros anos, respondeu o Palha.

— Também não digo já; eu não irei tão cedo. O desejo que me deu, quando saí de Barbacena, foi simples desejo, sem prazo; irei, não há dúvida, mas lá para diante, quando Deus quiser.

Palha acudiu, rápido:

— Ah! eu, quando digo que só daqui a anos, acrescento também que a vontade de Deus pode ordenar o contrário. Quem sabe se daqui a meses? A Divina Providência é que manda o melhor.

O gesto que acompanhou estas palavras era convicto e pio; mas nem Sofia o viu (olhava para os pés), nem o próprio Rubião escutou as últimas palavras. O nosso amigo estava morto por dizer a causa que o trazia à capital. Tinha a boca cheia da confidência, prestes a entorná-la no ouvido do companheiro de viagem, — e só por um resto de escrúpulo, já frouxo, é que ainda a retinha. E por que retê-la, se não era crime, e ia ser caso público?

— Tenho de cuidar primeiro de um inventário, murmurou finalmente.

— O senhor seu pai?

— Não; um amigo. Um grande amigo, que se lembrou de fazer-me seu herdeiro universal.

— Ah!

— Universal. Creia que há amigos neste mundo; como aquele, poucos. Aquilo era ouro. E que cabeça! que inteligência! que instrução! Viveu doente os últimos tempos, donde lhe veio alguma impertinência, alguns caprichos. Sabe, não? rico e doente, sem família, tinha naturalmente exigências... Mas ouro puro, ouro de lei. Aquilo quando estimava, estimava de uma vez. Éramos amigos, e não me disse nada. Vai um dia, quando morreu, abriu-se o testamento, e achei-me com tudo. É verdade. Herdeiro universal! Olhe que não há uma deixa no testamento para outra pessoa. Também não tinha parente. O único parente que teria, seria eu, se ele chegasse a casar com uma irmã minha, que morreu, coitada! Fiquei só amigo; mas, ele soube ser amigo, não acha?

— Seguramente, afirmou o Palha.

Já os olhos deste não brilhavam, refletiam profundamente. Rubião metera-se por um mato cerrado, onde lhe cantavam todos os passarinhos da fortuna; regalava-se em falar da herança; confessou que não sabia ainda a soma total, mas podia calcular por longe...

— O melhor é não calcular nada, atalhou Cristiano. Nunca será menos de cem contos?

— Upa!

— Pois daí para cima, é esperar calado. E outra coisa...

— Creio que não menos de trezentos...

— Outra coisa. Não repita o seu caso a pessoas estranhas. Agradeço-lhe a confiança que lhe mereci, mas não se exponha ao primeiro encontro. Discrição e caras serviçais nem sempre andam juntas.