Por chegarmos com vinte e quatro horas de atraso, ainda assim não vimos tarde, para oferecer destas colunas à atenção dos nossos leitores a carta do ex-senador pelo Estado do Rio de Janeiro. Faltaríamos a um dever, e fugiríamos a uma honra, se o não fizéssemos.
É nesta linguagem que ele se separa dos seus constituintes:
“Aos Srs. Eleitores do Estado do Rio de Janeiro
“Tendo terminado o meu mandato de senador da República, julgo oportuno declarar desde já e de modo mais respeitoso:
“que não aspiro à honra da renovação do mandato;
“que não sou nem serei candidato à reeleição.
“Aos eleitores do Estado do Rio de Janeiro, que, por duas vezes, me honraram com os seus sufrágios, dirijo agora os meus agradecimentos por essa generosa demonstração da sua confiança; cumprindo-me, apenas, lamentar se acaso, no desempenho do mandato, que me confiaram, não correspondi, como desejava, aos seus elevados e patrióticos intuitos.
“Obedecendo esta resolução ao propósito em que estou de afastar-me da vida pública, para atender, na esfera da minha vida privada, a deveres imperiosos; cônscio, além disto, de que já não posso prestar serviços valiosos, julgo proceder com patriotismo deixando vago na representação do Estado do Rio de Janeiro e na política geral da República, o posto que ocupei, para que ele seja preenchido por quem possa, com mais acerto e mais felicidade, servir à nossa pátria, prestando à República os serviços que eu não pude prestar-lhe.
“Capital Federal, 22 de novembro de 1899. — Q. Bocaiúva.”
Na fisionomia deste documento, calmo, penetrante e solene, como sempre foi a palavra nos lábios do cidadão, que o firma, está a gente a sentir a impressão de uma tristeza irresistivelmente comunicativa. Perde-se de vista o homem, que desaparece placidamente na profunda tranqüilidade da vida interior, para se cair numa dessas sensações de melancolia ambiente, em que o fato individual se vai esbatendo e dilatando até ao círculo do horizonte. Já não é o incidente o que se enxerga, e acaba por nos envolver. É a cerração geral de uma era de decadência, que se rompe a um raio de luz crepuscular, deixando medir instantaneamente o fundo da sua esterilidade.
De resoluções como a em que se acaba de fixar o Sr. Quintino Bocaiúva, quando tomadas por um espírito como o dele, não há, debaixo do céu, tribunal habilitado para julgar exatamente, senão o da consciência mesma, onde se assentaram. São condensações morais de causas íntimas, antigas, persistentes, em que a síntese do ato definitivo, lentamente desenvolvida por um trabalho semi-reflexivo, semi-inconsciente, amadurece um dia na intuição de uma necessidade, a que o ânimo honesto obedece como ao dever revelado e imperioso. Não se contesta que certos nomes tenham grandes responsabilidades para com a sua época. Mas esta não as deixa de ter também para com eles. E, quando a fraqueza do indivíduo se sente desarmada ante a fatalidade dos destinos do seu tempo, uma atração invencível para a obscuridade, um enjôo mortal da luta, um sentimento esmagador do nosso nada se apodera das índoles mais nobres, dos caracteres mais fortes. Aquele que da sua existência consagrou à de seu país tão larga parte, e com tamanha dignidade, fez o que podia; e, se por fim, sem descrer do seu ideal, já se não sente capaz da antiga fé na harmonia entre ele e o presente, ninguém terá o direito de lhe pedir contas pelo último ato de sinceridade e energia que pratica, ausentando-se da cena.
O ilustre homem de estado foi um dos que semearam de mais longe este regímen. Teve na sua pré-história a missão de um dos seus mais esforçados precursores. Deu-lhe à semente o amanho de uma propaganda tenaz e brilhante. Na crise da sua germinação desempenhou um dos mais altos papéis entre os fundadores. Se alguma coisa então o diminuiu na influência, em que ninguém lhe devia levar vantagem, foi o seu desinteresse, a sua modéstia e a sua superioridade. Nenhum dos seus cooperadores, porém, dirá que ele decaísse jamais uma linha no seu respeito e na sua confiança. Quando lhe tocou a impopularidade, soube atravessá-la sem turvação de ânimo, nem azedume contra os homens, ou as coisas; e, experimentando o reverso dos aplausos, não sofreu o da consideração, infinitamente mais preciosa para as almas de valor que a moeda barata dos fugaces entusiasmos. Ninguém teve mais autoridade nas assembléias republicanas. Príncipe na imprensa, mestre da tribuna, chefe dos partidos, reunia em si todas as condições, para ter ocupado, na administração do país, sob as formas atuais, um dos primeiros lugares.
Contudo, não passou da dignidade ornamental entre as instituições reinantes. De cada vez que elas necessitavam de um símbolo, todos os olhos, na milícia das ambições, se voltavam para esse tipo ereto e sereno. De cada vez que tinham de encarnar-se numa investidura ativa, todos o evitavam. Hoje a política se sente aliviada de uma concorrência formidável, da importunidade de uma grande preterição. A soberania dos inferiores está mais a seu gosto. Cresce, no estado, com a mediocridade, a solidez. Parece que deste modo nos aproximamos praticamente da verdadeira democracia. Não podendo imitar de outra sorte o nosso modelo ostensivo, acercamo-nos dos Estados Unidos na tendência da sua evolução a eliminar a idoneidade, e entregar o governo à indústria dos politicantes. Pode-se calcular o resultado final dessa aberração normalizada, advertindo em que, na América do Norte, os medíocres exercem o poder sob o freio da opinião pública, enquanto, no Brasil, o domínio da incapacidade coincide com a abdicação universal do país.
Não queremos ser temerários; mas não cremos sê-lo, imaginando que o sentir contínuo de uma distância tamanha, crescente e invencível, entre as aspirações do seu civismo e a realidade das suas forças acabasse por gerar, no coração do patriota, um sofrimento de canseira doentia. Ele devia ter compreendido, afinal, que não podia nada. A criação dos seus sonhos saiu-lhe das mãos emancipada e intolerante do freio de compromissos obsoletos. Só cede ao mecanismo das influências vulgares e desabusadas, que manipulam o governo, ou dele se propagam. Uma das bênçãos, pois, que o Sr. Quintino Bocaiúva mais deve agradecer à Providência, é não o ter exercido. Destarte, passando pelo desgosto de não operar o bem, desfruta, ao menos, o consolo de não ter produzido o mal.
É nesta quadra, uma ventura imensa, talvez a única de que se poderão felicitar presentemente aqueles, que roçaram pelo poder, e não foram arrebatados à altura da sua vertigem.