Verão. Canícula horrenda.
Nenhum rumor. Tudo paz.
Dentro, na ampla vivenda,
Dorme o salão da fazenda
Na meia luz em que jaz...
A cena é típica. Vede:
O piano, um quadro a carvão,
O espelho oval na parede,
E peles de onça no chão.
Com ar vetusto, um ar sério,
Largos divãs, um sofá:
Mobília, estilo do Império,
De negro jacarandá.
Cortinas claras, bem alvas,
Dão certo chiste e frescor;
Um lindo vaso, com malvas,
Verdeja no aparador.
E ali, na penumbra amena,
Queda-se o vulto de alguém.
É moça. Esbelta e morena.
Formosa como ninguém!
Vai nela um tédio, uma quebradeira.
Um não-sei-quê de languidez
Que estranha moça! É fazendeira.
Casou-se há menos de um mês.
E ali, com o talhe ondulante,
Vestido de tafetá,
Ela, a morena elegante,
Quase sorri... Que será?
Sonha... Encostada à janela,
Derrama, absorta, a cismar,
Sobre a fronteira aquarela,
Todo um nostálgico olhar.
Sempre o painel costumeiro!
As mesmas cenas banais:
A estrada, a tulha, o terreiro,
Os montes... os cafezais...
Sonha... E no seu sonho doirado,
Num relembrar, grato e bom,
Põe-se a rever seu passado
De fina moça do tom.
Céus! Que alegrias perenes!
Com que prazer, com que afã,
Ela, na quadra do tênis,
Surgia toda a manhã...
Como era ardente, era franco,
Esse entusiasmo de então:
Todos vestidos de branco,
E de raquette na mão!
E a bola voava... Que graça!
Ele... Oh, que sonho gentil:
Ante os seus olhos perpassa
Uma silhueta... um perfil,
É moço. O todo fidalgo
Romântica palidez.
Jovial, finíssimo, esgalgo.
Loiro como um inglês.
Que bela e curta essa história!
Paixão? Capricho? Sei lá...
Ela, a sutil merencória,
Lembra-se bem... Foi num chá.
Ele, ao dizer o que disse,
Punha veludos na voz...
Ah, quanta ingênua doidice
Não se disseram a sós!
Tarde fugaz, tarde louca,
A desse chá singular.
O que morria na boca
Dizia em chamas o olhar.
Foi lindo. Quase noivado.
Foi todo um trecho de sol.
Ah, os encontros no prado,
Os flirts no futebol.
Depois... Pobre castelo,
Pobres sonhos e ideais!
Aquele amor, claro e belo,
Teve o destino dos mais.
Morreu. Foi breve e fugace.
Despetalou, sem florir,
Como um botão que tombasse
Na tarde que ia se abrir.
E ela evoca o seu desgosto...
Repassa a história infeliz,
Como quem abre, por gosto,
Um talho de cicatriz.
Naquela rude simpleza,
No ermo daquele sertão,
Funda, mordente tristeza,
Confrange-lhe o coração...
Que horror! Que sesta enervante!
E ela, com tédio sem par,
Sobre a aquarela distante,
Deixa os seus olhos vagar.
Olha... E vê, no horizonte,
As mesmas cenas banais:
— O pasto, o córrego, o monte,
Os campos... os cafezais...
Então, no enfaro da roça,
Na angústia do seu cismar,
Uma lágrima, bem grossa,
Despenca do seu olhar...
E linda, o talhe ondulante,
Vestido de tafetá,
Senta-se ao piano. E vibrante,
Põe-se a tocar... Que será?
" Rève d'Amour". Grave triste,
Feito de sonho e de unção,
A alma sonora de Liszt
Enche de sons o salão...