Tal era Arnaldo Gracias, por emquanto todo entregue á sua paixão pela nevrotica Julia Candelaria.
Entabolara-se o caso, estando elle de pousada na casa em commum de varios empregados de commercio, seus amigos intimos dessa temporada, como era de meio mundo em certas quadras, segundo a veneta, pois não raro tinha tambem acessos de misanthropia, e desapparecia, sem que ninguem pudesse attinar onde ia encafuar-se.
Mettidos a aristocratas e moços de boa roda, habitavam os taes empregados do commercio nas Larangeiras, perto do palacete Candelaria.
Panno para mangas forneceu o publico namoro de Gracias, estampando-lhe as gazetas quasi que diarios sonetos coroscantes, embora monotonos e impregnados de sentimento todo facticio. O auctor porém e alguns adeptos fervorosos os tinham em conta de indiscutiveis obras primas.
— É o Petrarca sul-americano, decidia um dos discipulos na arte bohemia; assombroso, um abysmo!
Não cabia pois Jilia em si de contente, dava escandalo, servindo-se das mucamas e dos molecotes da casa para, a cada momento, enviar cartas e fitinhas, pontas de cabello e flores allegoricas, ou docesinhos e mais isto e mais aquillo, ao incansavel trovador.
Teria, por cento, preferido mais elegancia e plastica no seu porte, barba menos hirsuta, cabellos mais disciplinados e principalmente menos surrado um celebre sobretudo, de verão e inverno; mas emfim, com um bocadinho de exaltação muito senão póde transformar-se em qualidade esthetica.
— Que alma! Exclamava com enthusiastico fervor, e que talento, quanta imaginação!
Num bello dia, lembrou-se de autorisar o nosso Gracias a ir pedir ao commendador a sua mão- uma tentativa.
“Perigosa cartada, a que jogamos, dizia ella em carta, mas procurarei por todos os meios e com o maior geito preparar o terreno. Terei coragem; conto com a sua resolução. Apresente-se afoutamente.”
E por ahi ia, numas quatro longas paginas.
Gracias, que não guardava segredos com ninguem, e menos ainda com os amigos intimos de occasião, mostrou logo a carta aos companheiros de estadia.
Foi um só brado.
— Olhem o felizardo! Então vai metter-se em cobreira grossa, tornar-se do pá para a mão capitalista graúdo. Que protecção escancarada da sorte! Duzentos contos de pancada!
Quedou-se o nosso heróe não pouco conturbado. Devéras a fortuna repentinamente lhe batia á porta, quando menos pensava em dinheiro? Então iam Ter fim todas as miserias que curtira, ainda que o não preocupassem lá muito, mesmo nada?! Duzentos contos? Que faria de tanto dinheiro, de tantas notas de Thesouro Nacional?
Chegou a declarar muito sériamente que, mal entrasse no dote da menina, mandaria construir vasto hospicio para cavallos e animaes vagabundos, abandonados por doentes e imprestaveis.
— Palavra de honra, gritava, fustigando os moveis com muita força. A humanidade lhes deve isto. Depois, cuidarei de montar a minha grande revista. Preciso, desde logo, dignificxar o dinheiro do gallego.
E falava já com o entono de um millionario.
Em casa, porém, do commendador, reinava muita agitação. A peito descoberto e com ares de irrevogavel resolução, denunciára Julia a paixão que a dominava, batera o pé, tivera uma série de fanicos, mas nada conseguia senão frequentes: “Ora bolas! Contenha-se menina!” “Tenha paciencia, estou já com noivo quasi arranjado!” “Que maluca!” “Não seja tola”, “vá bugiar” e outras phrases de invencivel resistencia, além de muitas descomposturas ao tal pelintra, que viera interpor-se entre pai e filha: “Um valdevinos; conheço-o muito: chupador de cerveja da rua do Ouvidor, batedor de carteira”, e mil outros deprimentes qualificativos, entre os quaes voltava a cada passo o de “poeta d’agua doce”.
De tudo foi logo informado Gracias, mas lá vinha a recommendação: “Não se importe; apresente-se em casa e peça a minha mão. Precisamos Ter do nosso lado a razão. Papae gosta muito de mim mas lá a seu modo.
E tal a insistencia que, numa tarde, ao escurecer, subiu o descendente dos guerreiros hespanhoés, um tanto commovido, força é confessar, as escadas do commendador Candelaria, enfiado n’uma casaca emprestada que, por signal, não lhe assentava nada. Logo se denunciava roupa de emprestimo. Casaca só? Qual, camisa, d’este feita bem limpa, collete, gravata branca, calças, claque e luvas que segurava da mão despretensiosa elegancia – jámais as poderia calçar. Fizera vir da loja botinas de verniz para essa entrevista decisiva.
— É o meu Covadonga, annunciára elle, vou entestar frente a frente com o sanguinario alarabe Alkamah. Pelas barbas dos Gracias, que não me mette medo o bronco Almoravide.
Recebeu-se o Candelaria de cara muito amarrada, todo vermelho, quasi apopletico. Como, porém, se prezava de muito bem educado – uma das suas manias- fel-o sentar, empertigado, casmurro, deixou-o fallar, expôr ao que vinha.
Após breve hesitação, fallou, fallou o rapaz quasi a perder o folego, legitima conferencia, como se estivesse de posse da tribuna da Gloria. Não poupou os excellentissimos.
Afinal o velho o interrompeu, todo inchado de ira:
— Tudo isto é muito bom, declarou com solemnidade de pessoa de finissimo trato; mas o senhor, consinta-me a franqueza, não tem nem eira e está perdendo o seu tempo. A minha filha não é para os seus beiços.
— Tenho diante de mim o futuro, exclamou lyricamente Gracias.
— Bom, bom, não admitto conversas fiadas.
E levantou-se para não arrebentar. Fervia-lhe o sangue nas entumecidas veias.
Quis o pretendente replicar.
— Basta, basta, meu rico senhor. Isto aqui não é ponto de bilontras. Queira retirar-se, quanto antes. Pão, pão, queijo, queijo! Por alli é o caminho da rua.
Portou-se Gracias com incontestavel dignidade e calma.
— Pois bem, exclamou um tanto melodramatico, retiro-me, Sr. Commendador, mas lavro solemne protesto. Hei de vingar-me, espera pela pancada.
E descida a escada, ao chegar a soleira da porta, voltou-se, fez das mãos em concavo sonoro porta-voz e atirou aos ares o mais formal desafio a todos os paes despoticos e da velha escola.
— Ó sujo! Ó pé de chumbo.
Em vibrante epistola, sem mesmo despir a casaca, contou logo á Julia o resultado da desastrada conferencia. “Fiquei, narrou elle, offendido nos meus brios mais sensiveis e melindrosos. Tudo supportei por seu esse brutamente seu progenitor. Fôra outro homem, e a esta hora estaria estrangulado, morto. Imagina quanto não soffri. Houve momentos em que suppuz perder a razão com o esforço que fiz por me conter e reprimir os marulhosos borbotões do meu sangue hespanhol. Ainda estou pasmo de ter tido tamanha poder sobre tantos avós, que, do fundo das minhas entranhas, bradavam ululantes: “Vinga-te, mancebo; lembra-te de nós, não deixes que esse desalmado e vil portuguez zombe de Aragão e Castella!”
E, mais por leviandade, do que de tenção feita, terminava propondo á amada immediata evasão d’aquella sinistra Bastilha: “Fujamos, dizia arrebatado, é preciso pôres trermo a tão intenso padecer. Tudo tem limites, a resignação, a paciencia, a cordura, é doce palomba, estrella do meu amor, vida da minha vida, etc., etc.”
“Fujamos”, foi a resposta, sem a menor vacillação.
E os dous trataram da prompta realisação do temerario projecto.