Não obstante as suas barbas hirsutas, e aquele nariz aquilino, que parecia espiar, curioso, para o abismo da boca dissimulada sob os bigodes, Abraão Salazar não era um homem triste. Na Sinagoga, nas reuniões religiosas, era, mesmo, dos menos soturnos, a ponto de ter sido censurado uma vez, com os olhos, pelo rabino Melchisedec.

Foi, por isso, motivo para estranheza o modo porque aquele honrado descendente de Israel entrou, naquela noite, no pequeno prédio da rua da Alfândega, onde se iam erguer novas preces pela felicidade dos judeus espalhados por todo o mundo. E como ninguém tivesse mais intimidades com ele do que o velho Isaac Labbareff, foi a este que coube o direito de aproximar-se de Abraão, para uma pergunta fraternal.

— Estás doente? — indagou, com os olhos muito pequenos, muito vivos, faiscando entre as sobrancelhas revoltas, como dois diamantes escondidos na relva.

— Não. Uma desgraça.

Os olhos de Isaac refulgiram, ainda mais.

— Deixaram de pagar-te algum empréstimo? — indagou?

— Não — informou, seco, Abraão Salazar.

E cerrando o cenho:

— Imagina tu, que, ao entrar em casa, encontrei o Daniel, Daniel Shakaroff, aos abraços com minha mulher!

— E não o mataste? — indagou, recuando, o velho judeu.

— Não. E é isso que me revolta. Eu não podia matá-lo.

— Não podias? — rugiu o ancião.

A Abraão, os punhos contraídos, os dentes cerrados, na raiva de quem se sentiu manietado:

— Não sabes, então, que ele me deve duzentos mil réis?