- Que lhe parece, compadre, a história do Gabriel, hein?
- É verdade; também dar-se dinheiro a um sujeito extravagante...
- Está assim meio parecida com aquela do Cipriano Silva.
- Qual! aquele não deu prejuízo a ninguém; é verdade que sumiu-se com o dinheiro dos outros; mas comprou gado, arrendou campo, e na primeira safra apareceu, pagou tudo até com juros e arrumou a vida; mas este Gabriel não; este era um gastador conhecido, um perdido, um alarife.
- Dizem que aí pelas imediações do Pau Fincado chegou a uma casa para pedir água e como estavam fazendo pão pediu um, que uma moça lhe deu, e ele em troca deu uma onça de ouro.
- Aí tem; é porque não lhe custaram a ganhar; mas afinal veja o que lhe aconteceu. Chegando ao lugar onde devia apartar os gados para os patrões, intitulou-se tropeiro por sua conta, e, enquanto esperava uns dias, namorou a filha do estancieiro, e já estava para casar, quando senão quando, pela demora e pelas notícias que ele ia deixando, chegou a policia e ali mesmo em presença da noiva foi preso e atado como um Cristo. O dinheiro já tinha gastado quase a metade, porque pagodista ele era e bem.
- Que vergonha! e fie-se a gente num sujeito destes, todo aperado e monarca. Como não ficaria a moça...
- Ora, havia de ficar satisfeita, porque se viu livre de um gavião, de um maroto.
Esta conversa tinha lugar pouco mais ou menos no princípio do verão de 1860, na estrada de Piratini: freqüentadissima então por viajantes de todo gênero, mas especialmente por comitivas de tropeiros, que de todos os pontos da campanha, e mesmo do E. Oriental, por ela transitavam a negócio de gados para as charqueadas de Pelotas.
Naquele tempo o tropeiro cercava-se de uma certa aura de probidade ilibada e confiança quase sem limites. Quantias, não em papel como hoje, mas em bom ouro, capazes de proporcionar uma regular fortuna, eram facilitadas a homens que outra cousa não tinham para dar em garantia, senão a sua palavra, e esta era aceita e desempenhada.
Até então raríssimos, senão quase desconhecidos, eram os casos de estelionato ou de abusos de confiança, e se algum se dava era logo falado e comentado por toda parte, até nas estradas, pelos andantes, como acabamos de ver.
A pequena comitiva de que nos ocupamos era composta de quatro pessoas. Seguia a trote curto estrada fora, levando por diante uma tropilha de dez cavalos tordilhos gordos e delgados, os quais seguiam todas as voltas do caminho, como viajeiros traquejados.
O pessoal marchava em fileira, como é costume em nossa terra, aproveitando a circunstância favorável do campo limpo.
Os lugares de direita e esquerda eram ocupados por dois peões que dirigiam a cavalhada. No centro iam os dois cavaleiros que representavam chefe e imediato.
Um deles, moço de seus 28 anos, pelo seu arranjo e trato pessoal, denunciava logo a presença de um estancieiro opulento.
Seu rosto moreno e sério, emoldurado em negra cabeleira e barba recentemente aparada, tinha a expressão de beleza varonil tão apreciada das mulheres e comum dos homens que passam vida ao ar livre.
Sem ser corpulento era, ainda assim, convenientemente musculoso e robusto, sem detrimento de uma certa elegância de porte. O cavalo em que ia trotava asseadamente, mascando o freio com impaciência, de modo que muito antes de aproximar-se, ouvia-se já o ruído dos aperos, que os tinha e dos melhores. O outro, mais velho pelo menos 15 anos do que o seu companheiro, trajava menos corretamente, mas nem por isso desmerecia dele.
Descendente de gaúchos, gaúcho era. Seu cavalo, faceiramente tosado, arqueava arrogante o largo pescoço de onde pendia o maneador bem sovado e parelho, encolhido em forma de trança, servindo de peitoral e na garupa o inseparável poncho emalado.
Amplas bombachas de merinó preto; compridas botas de cano envernizado, de cujos talões pendiam dos cabrestilhos de lonca um par de esporas de ferro azulado. Completava seu trajo exterior uma japona de pano piloto, lenço a tiracolo e chapéu de pêlo muito em moda naquele tempo, com barbicacho atado em forma de tope sobre a orelha. Sua basta barba grisalha flutuava à mercê do vento.
Campeiro caprichoso, não lhe faltava uma guasca, um tento nos arreios. Desde a maneia de couro graneado e do laço fino e bem traçado que trazia em pequenas rodilhas sobre a anca do cavalo, até o rebenque e o ponteado encoberto das rédeas e mais preparos de guasca chata, todos entremeados de corredores e botões, à laia de bombas e maçanetas - tudo era completo, apenas com certo exagero quanto à resistência e solidez destes utensílios.
Tinha fama e sabia como ninguém preparar um ligar e cortar uma carona, que assentava com garbo nos flancos de qualquer animal, por mais sotreta que este fosse.
Nisto era perito, tanto o mais que o melhor alfaiate de hoje em talhar um fraque ou jaleco bem ajustado no corpo de um freguês da moda.
Fora sargento dos dragões e servira nas nossas guerras com os vizinhos uruguaios, ao mando do major Facundo Borba, pai do chefe da comitiva.
Era o compadre Giloca, mas o seu nome próprio era Jerônimo de Quadros, com quem João de Borba se entretinha em conversar sobre as diabruras do Gabriel.
Os outros dois eram o índio velho Chico Pedro, antigo soldado e peão de estância dos Borbas, e o piá Nadico, de 12 anos de idade, que exercia as funções reunidas de carregador de malas e avios de mate do patrão e de cavalheiriço, sob as ordens de Chico Pedro, seu superior e mestre.
Este, com um barbicacho passado pelo nariz e pés metidos em umas botas que não lhe ficavam de medida, usava uma velha farda e por toda gala dos arreios trazia o laço bem caldo sobre os garrões do cavalo, cuja cola atava sempre o mais em cima que podia. Fora domador consumado e boa praça, tendo desempenhado várias comissões como cabo arvorado, por isso toleravam-lhe este luxo de que muitos patrões não gostam.
Chamavam-lhe o cabo velho e era o vaqueano; a sua experiência de 60 e tantos anos, passados em gauchadas e correrias, autorizavam-no a conhecer a palmos, a um lado e outro da fronteira, de noite como de dia, todos os passos, picadas e bibocas.
Habitualmente calado, quando se falava nisto ficava muito ufano e puxando-se por ele começava logo a contar anedotas dos seus bons tempos de moço, principalmente se havia como tomar um trago de que muito gostava. Durante a marcha rompia o silêncio, aproveitando as ocasiões de mostrar-se conhecedor de lugares e ia indicando os nomes dos passos, dos moradores, calculando a jornada, a sesteada, o pouso, etc.
Assim, estendendo o braço, anunciava a um lado: "Venda do Fura-bucho; já andemos duas léguas desde o passo da Maria Gomes; daqui ao Quinca-tatu há ainda três; ainda vamos hoje ao Cruzeto com duas braças de sol".
Quatro dias eram decorridos e a nossa comitiva continuava a sua marcha sem incidente notável.
A estrada das Alegrias tinha já sido batida; a serra do Veleda, a das Asperezas, o Seis-dedos, o Batista do café bom, o Davi torto, tudo já tinha ficado atrás. À esquerda o Serro do Baú, o da Gregória, à direita o dos Porongos, e os últimos contrafortes das serras dos Tapes e do Herval foram-se pouco a pouco abatendo e tornandose como pontos esfumados no horizonte.