— A sua intimação era para as onze horas.
— Não me foi possível vir a essa hora. Só a recebi às duas... Estive fora...
— Entretanto, segundo disseram no hotel, o sr. costuma almoçar lá e sai pouco antes das onze, não é?
— É verdade; mas, excepcionalmente, hoje, saí muito cedo, almocei com um amigo e...
— Bem. Sente-se e espere o Delegado...
Falava a verdade. Era de fato meu hábito sair do hotel pouco antes das onze, para ir rondar as proximidades da Câmara. Nesse dia, porém, aquela súbita inspiração de ir procurar de madrugada o deputado, tinha-me feito quebrar o hábito. Acresce que, ao voltar, vim a encontrar o dr. Michaelowsky. Estivemos instantes conversando e ele convidou-me para almoçar. Não era a primeira vez que o fazia; o meu orgulho obrigava-me sempre a recusar. Dessa feita acedi. Estava deprimido, desalentado; a minha vontade era frouxa; os meus sentimentos tinham-se enfraquecido durante aquela longa viagem de bonde a pensar na vida, a curtir ódios, a arquitetar vinganças e a farejar a miséria próxima. Fui desejoso de encontrar uma afeição, uma simpatia, naquele estrangeiro, um aventureiro, um ente cujos precedentes não conhecia, cuja lhaneza de trato, comunicabilidade especial e generosidade, porém, me atraíam e solicitavam fortemente. Foi almoço de camaradas, rico de confidências, trocamos idéias, contou-me um pouco de sua vida e eu contei-lhe a minha. Era da România. Seu pai era um emigrado russo; sua mãe, grega. Estudara no Cairo, correra a Europa, a Ásia e América. Tinha 45 anos e sentia-se absolutamente sem pátria, livre de todas as tiranias morais e psicológicas que essa noção contém em si. Era capaz de aprender todas as línguas, escrevê-las, falá-las em três ou quatro meses. Em cada país demorava-se pouco, cinco ou seis anos; procurava os jornais, defendia esta ou aquela questão, ganhava dinheiro e vivia. Contava-me isso bebendo e à proporção que bebia vinhos franceses os seus olhos de conta e azuis com reflexos metálicos ficavam mais brilhantes e mais penetrantes. Falou-me em poetas, em filósofos; traçou, a grandes golpes, o destino da humanidade, provocou-me grandes e consoladoras visões patrióticas, e só vim a deixá-lo saudoso pelas duas horas, quando me dirigi ao hotel. Ali recebi a intimação do delegado e corri à delegacia obedientemente, depois desse delicioso almoço que quase me fez esquecer os dolorosos momentos da manhã.
Troquei as necessárias explicações com o inspetor de dia. O seu autoritarismo não me amedrontou. A sua pessoa era sem força, combalida, desanimada, muito pálido, com lindos cabelos negros e uma miséria física de penalizar. Transpirava desgostos, resignação e um pouco de bondade no seu olhar semi-aberto e nos seus lábios frouxos.
Obecedendo à sua ordem, sentei-me entre outras pessoas de cujas fisionomias não fiz grande reparo. Pus-me a olhar pela janela aberta uma nesga do céu. As nuvens pardacentas que, pelo caminho, eu vira subirem por detrás da cortina de montanhas, só deixavam agora ver, do céu, um rasgão irregular.
Até então, eu não sabia ao certo o que viera fazer àquela delegacia. O copeiro que me transmitira a ordem da autoridade, falou-me por alto num roubo que houvera no hotel pela noite última. Ao Coronel Figueira, furtaram cerca de seis contos em dinheiro, afora objetos de valor.
— Que vou fazer lá? indaguei do copeiro.
— Depor, naturalmente.
Sentado na estação policial é que me lembrei que ele sublinhara a resposta com um piscar de olhos cheio de canalhice... Seria possível? Qual! Eu era estudante, rapaz premiado... Qual! Nem por sombras!...
A delegacia continuava silenciosa e as pessoas sentadas pelas cadeiras não ousavam entreolhar-se. Não havia duas horas que eu, no restaurant, me pusera a imaginar grandes coisas. Michaelowsky incitara-me a trabalhar pela grandeza do Brasil; fez-me notar que era preciso difundir na consciência coletiva um ideal de força, de vigor, de violência mesmo, destinado a corrigir a doçura nativa de todos nós. Pela primeira vez de lábios humanos, ouvi dizer mal da piedade e da caridade: sentimentos anti-sociais, enfraquecedores dos indivíduos e das nações... Virtudes dos fracos e dos covardes - resumia ele. Houve um grande estupor em mim; eu tinha do meu natural um grande respeito por essas virtudes e a minha educação isolada, comprida, órfã de afetos, só fizera estimular e aumentar esse meu respeito. Não sei como a conversa foi variar para beleza. Ele riu-se do nosso critério habitual dela, da insignificância do critério dos nossos literatos. Gente, disse-me ele, que vive perturbada, desejosa de realizar ideais de povos mortos, ideais que já se esgotaram; prisioneira da arqueologia, e muito certa de que a verdade está aí, como se houvesse uma beleza absoluta, existindo fora de nós e independente de nós? Por aí ele fez uma formidável charge aos nossos intelectuais. Eu sinto não poder reproduzi-la aqui. Estávamos em meio do almoço e o vinho dava asas às suas palavras e tornara mais lúcido o meu espírito. Referindo-se ao Laje, chamou-o de águia, homem de presa, super-homem e por mais que eu quisesse tirar informações sobre o padeiro, ele se limitou sempre a ditos sibilinos que mais me aumentaram as velhas suspeitas.
O meu conhecimento com o doutor Michaelowsky, se bem que recente, vinha sendo mantido e fortalecido com freqüentes encontros na rua do Ouvidor. O meu provincianismo e acanhamento davam-se perfeitamente no tumulto que a anima. Nela, eu combinava as minhas necessidades de sociabilidade com o meu temperamento delicado e desconfiado, ao qual uma sociabilidade mais perfeita expunha a ofensas e a indelicadezas dolorosas. Depois, olhava, olhava a fartar: homens, moços e velhos, mulheres, senhoras. Quando acontecia encontrar o jornalista internacional, trocávamos cumprimentos com os chapéus, polidamente, atenciosamente. O gênio comunicativo do russo e o hábito de viajante de adquirir rapidamente relações e camaradas, foram vencendo aos poucos a minha reserva e a desconfiança. Convite como este, já me fora feito várias vezes e eu sempre recusara com delicadeza e dignidade. Entrando no hotel, logo ao sentar-me, tive ímpetos de confessar os meus desgostos ao jornalista; o meu orgulho irracional fez-me calar...
Por esse tempo, passos fortes na escada vieram perturbar os meus pensamentos. Todos nos viramos para a porta de entrada. Pela sala adentro entrou aquele senhor de cartola e calças brancas que me disseram Senador, num bonde de barcas. Tirou a cartola com repugnância, enquanto o inspetor levantava-se respeitosamente.
— V. Exª?!
— Boa tarde. O Barros não está?
— Não, senhor. Saiu e só voltará para a audiência das seis horas.
— Que diabo! fez aborrecido o Senador.
— Se V. Exª quer alguma coisa urgente, pode procurá-lo agora no Pascoal... Ele disse-me que ia para lá...
O alto dignitário da nação fez menção de retirar-se e o inspetor já se tinha sentado, quando subitamente o Senador se voltou dizendo:
— Era coisa urgente... você bem me podia informar se...
Olhou ao redor cautelosamente e depois continuou a falar naturalmente:
— Você bem me podia dizer se o "Nove-dedos" está preso aqui?
— Aqui, não. senhor Senador. Até agora, só temos no xadrez um ébrio...
— Mas... disseram-me que tinha feito um roubo... Esse rapaz é um doido!
— Onde foi, Exª?
— No Largo de São Francisco.
— Ahn! Não é aqui conosco; é com a nona.
— Obrigado.
Apertou a mão do rapaz cheio de agradecimento e saiu murmurando de modo que fosse ouvido por todos nós: Aquele doido só me leva a incomodar!
A sala da delegacia voltou novamente ao seu silêncio primitivo. Um soldado veio apresentar-se, trocando rápidas palavras com o inspetor. Um relógio próximo bateu quatro horas. Dos compartimentos do fundo, chegou um personagem ventrudo, meão de altura, de pernas curtas, furta-cor, tendo atravessado no peito um grilhão de ouro, donde pendia uma imensa medalha cravejada de brilhantes. Dirigiu-se ao inspetor:
— Raposo, vou sair: há alguma coisa?
— Nada. Capitão Viveiros.
— E o caso do Jenikalé? Já apareceu o tal "mulatinho"?
Não tenho pejo em confessar hoje que quando me ouvi tratado assim, as lágrimas me vieram aos olhos. Eu saíra do colégio, vivera sempre num ambiente artificial de consideração, de respeito, de atenções comigo; a minha sensibilidade, portanto, estava cultivada e tinha uma delicadeza extrema que se juntava ao meu orgulho de inteligente e estudioso, para me dar não sei que exaltada representação de mim mesmo, espécie de homem diferente do que era na realidade, ente superior e digno a quem um epíteto daqueles feria como uma bofetada. Hoje, agora, depois não sei de quantos pontapés destes e outros mais brutais, sou outro, insensível e cínico, mais forte talvez; aos meus olhos, porém, muito diminuído de mim próprio, do meu primitivo ideal, caído dos meus sonhos, sujo, imperfeito, deformado, mutilado e lodoso. Não sei a quem me compare, não sei mesmo se poderia ter sido inteiriço até ao fim da vida; mas choro agora, choro hoje quando me lembro que uma palavra desprezível dessas não me torna a fazer chorar. Entretanto, isso tudo é uma questão de semântica: amanhã, dentro de um século, não terá mais significação injuriosa. Essa reflexão, porém, não me confortava naquele tempo, porque sentia na baixeza do tratamento, todo o desconhecimento das minhas qualidades, o julgamento anterior da minha personalidade que não queriam ouvir, sentir e examinar. O que mais me feriu, foi que ele partisse de um funcionário, de um representante do governo, da administração que devia ter tão perfeitamente, como eu, a consciência jurídica dos meus direitos ao Brasil e como tal merecia dele um tratamento respeitoso.
As lágrimas secaram-se nos olhos, antes que o inspetor me apresentasse ao escrivão Viveiros. Olhou-me ele algum tempo, examinou-me com olhar de entendido. Creio que sondava as minhas algibeiras detidamente, antes de me fazer esta pergunta:
— O senhor é o moço do Hotel Jenikalé?
— Sou um deles.
— Qual é sua profissão?
— Estudante.
Houve algum espanto na sua fisionomia deslavada. Conteve-se e continuou-me a perguntar:
— Tem documentos?
— Alguns.
— Ah! Pode-se justificar perfeitamente.
— Como?
— Com testemunhas e documentos.
— Se não conheço ninguém aqui no Rio...
— Eu lhe arranjo.
— Aceito e obrigado.
— Mas custa-lhe trinta mil-réis.
— Não posso pagar, Capitão. Não tenho dinheiro.
— E o seu correspondente?
— Não tenho.
— Então meu caro...
Encolheu os ombros, afastou-se cheio de indiferença, sem olhar qualquer dos circunstantes. O inspetor continuou a escrever o seu interminável livro. De onde em onde, muito policialmente, passeava o olhar dissimuladamente sobre cada um de nós. Nuvens plúmbeas já de todo tinham coberto a nesga do céu vista pela janela. Havia como que fuligem na atmosfera e a luz do sol tornara-se de um amarelo pardacento e fúnebre. A temperatura continuava elevada e o ar abafado da sala incomodava-me. A ressonância especial das ruas subia até nós cada vez mais nitidamente. O bimbalho das campainhas era mais agudo, o rolar dos veículos mais redondo e mais dissonante, o ranger das ferragens dos bondes, os estalos dos chicotes e os apitos caprichosos dos cocheiros. Da delegacia, por entre essa bulha, percebemos que um vozeiro se aproximava. O inspetor levantou a pena e esperou. Um grande magote de povo invadia a sala. Os soldados correram e contiveram a multidão. Na frente, vinham duas mulheres do povo, desgrenhadas, rotas, que dois soldados, com esforço, mantinham separadas. Um deles, sem largar a mulher, explicou ao inspetor.
— Estavam brigando e pelo caminho ainda se atracaram; nós...
E logo ambas as duas se quiseram justificar, falando ao mesmo tempo. O inspetor repreendeu-as severamente. O soldado expôs. Moravam em uma estalagem próxima, eram lavadeiras, uma era casada e outra tinha "seu homem".
— Por que foi? - perguntou o policial.
De novo quiseram narrar ao mesmo tempo o motivo de tão apaixonado pugilato.
— Assim não pode ser, fez o inspetor. Ou uma ou outra... Vá, fale a senhora, acabou designando uma delas.
— V. S. sabe: sou pobre... Tenho uma galinha... Mais de uma; mas foi a pedrês. E não é de hoje, há muito tempo, sim senhor. A gente não pode, é verdade; mas que se há de fazer? Um bichinho é sempre bom, "seu" inspetor: dá alegria e ajuda a gente... É por isso que a comadre...
— Diga a Senhora afinal por que foi... Vá! intimou o inspetor.
— Eu já digo, sim senhor. Há muito tempo que a minha galinha punha e eu nada de ver os ovos. Procurava daqui procurava dali, nada de achar... Hoje eu tinha saído para levar o jantar do Manduca e quando voltei vi que a galinha vinha saindo da casa dessa mulher com a cara de quem já pôs... Ah! "seu" inspetor! deu-me uma gana, uma coisa que eu mesma não sei... Xinguei, fez ela por fim; e foi por isso...
Acabou a narração humilde, muito humilde com uma modulação de choro na voz.
— E a senhora que diz a isso? perguntou a autoridade à outra.
— Não foi assim, não senhor... Essa mulher sempre embicava comigo... Não sei por que, sempre andava com rezinga... Um dia era isso, outro dia era aquilo... Se o vento punha a sua roupa no chão, era eu; se...
— Mas afinal a galinha saiu ou não saiu de sua casa?
— Saiu, sim senhor; mas foi por acaso...
— Por acaso o quê! sua ladra, sua p...
— Que é isso! exclamou severamente o inspetor. Isto aqui é estalagem? Meto-a no xadrez! Está ouvindo?
A mulher descaiu logo a cabeça, que tinha erguido de um só movimento cheio de arrogância e, com voz entrecortada pelo choro, desculpou-se:
— Me perdoe, "seu" inspetor! A gente é pobre... Foi a patroa que me deu o "bichinho"... A gente pensa: vamos ter uma gemada, uma fritada, um doce, uma coisa ou outra... Compra-se milho e se espera... e se espera... No fim a gente vem a saber que os outros é que comem os ovos... Ah! Meu Deus!... É duro! É duro! É a sina da gente...
A rapariga falava desigualmente: ora, alongava as sílabas, ora fazia desaparecer outras; mas sempre premida das palavras, com um forte acento de paixão, superposto ao choro. As palavras saíam-lhe animadas, cheias de uma grande dor, bem distante da pueril querela que as provocara. Vinham das profundezas do seu ser, das longínquas partes que guardam uma inconsciente memória do passado, para manifestarem o desespero daquela vida, os sofrimentos milenares que a natureza fazia sofrer e os homens conseguiram aumentar. Senti-me comunicado de sua imensa emoção; ela penetrava-me tão fundo que despertava nas minhas células já esquecidas a memória enfraquecida desses sofrimentos contínuos que me pareciam eternos; e achando-os por debaixo das noções livrescas, por debaixo da palavra articulada, no fundo da minha organização, espantei-me, aterrei-me, tive desesperos e cristalizei uma angústia que me andava esparsa.
O inspetor procurou acalmá-la; a outra, muito popularmente, pôs-se a chorar explicando que não furtara os ovos, que não os comera, mas que guardara unicamente o primeiro, temendo que fosse "mandinga", "coisa-feita", e que, depois, com a continuação, não os restituíra com vergonha, mas que o faria logo que chegasse a casa. Acalmadas e repreendidas, foram-se e a delegacia em breve regressou à sua atmosfera enervante. A ela e ao meu abalo moral, juntavam-se a tonalidade amarelaça da tarde e o ambiente de forja para me dar um mal-estar nunca sentido. Esperava o delegado, procurando devanear, sonhar, analisar-me, mas era em vão: a inteligência não me obedecia. Havia em mim um grande vazio mental, e a imagem que me vinha aos olhos era a da pobre mulher a imprecar, sem nenhuma grandeza, contra o destino implacável, dentro daquela feia e triste sala. De repente a treva fez-se mais espessa. Na sala da delegacia acenderam as luzes, ao tempo que um relâmpago veio iluminá-la instantaneamente. Ouviu-se um estalido agudo, um ronco de trovão e, estremecendo, sentimos nós todos que um raio caíra nas proximidades. A chuva começou a cair fracamente, sem a violência que o rigor do céu ameaçava, quando a poderosa autoridade entrou. Passava das seis horas; a opressão da atmosfera diminuíra muito e o calor abrandara razoavelmente.
Chegou e eu esperei ainda. Afinal, fui levado à sua presença. Ao lado, em uma mesa mais baixa, lá estava o Capitão Viveiros, muito solene, com a pena atrás da orelha, o seu olhar cúpido e a sua papada farta. O delegado pareceu-me um medíocre bacharel, uma vulgaridade com desejos de chegar a altas posições; no entanto, havia na sua fisionomia uma assustadora irradiação de poder e de força. Talvez se sentisse tão ungido da graça especial de mandar, que na rua, ao ver tanta gente mover-se livremente, havia de considerar que o fazia porque ele deixava. Interrogou-me de mau humor, impaciente, distraído, às sacudidelas. Repisava uma mesma pergunta; repetia as minhas respostas. A sua impaciência levava-o a perder tempo. Não dava grande atenção ao interrogatório; olhava com insistência a rua, os bondes que passavam com cortinas arriadas. Num dado momento, como querendo levar a coisa ao cabo, perguntou pela terceira vez:
— Qual é a sua profissão?
— Estudante.
— Estudante?!
— Sim, senhor, estudante, repeti com firmeza.
— Qual estudante, qual nada!
A sua surpresa deixara-me atônito. Que havia nisso de extraordinário, de impossível? Se havia tanta gente que o era, por que não o podia ser eu? Donde lhe vinha a admiração duvidosa? Quis-lhe dar uma resposta mas as interrogações a mim mesmo me enleavam. Ele, por sua vez, tomou o meu embaraço como prova de que mentia.
Com ar escarninho perguntou:
— Então, você é estudante?
Dessa vez tinha-o compreendido, cheio de ódio, cheio de um santo ódio que nunca mais vi chegar em mim. Era mais uma variante daquelas poucas humilhações que eu já sofrera; era o sentimento geral da minha inferioridade, decretada a priori, que eu adivinhei na sua pergunta. E afirmei então com a voz transtornada:
— Sou, sim, senhor!
— Pois então diga-me de quem é este verso: - "Estava mudo e só na rocha de granito"?
— Não sei, não senhor; não leio versos habitualmente...
— Mas um estudante sempre os conhece, fez ele com falsa bonomia. É de admirar que o sr. não conheça... Sabe de quem é este outro: - "É o triunfo imortal da carne e da beleza"?
— Não sei absolutamente, e é inútil perguntar-mo, pois nunca li poetas.
— Mas o senhor, um estudante, não saber de quem são estes versos! Admira!
— Que tem uma coisa com outra, "seu" doutor? fiz eu sem poder reprimir um sorriso.
— Está rindo-se, "seu" malcriado! fez ele mudando repentinamente de tom. Muita coisa! É que você não é estudante nem nada; não passa de um "malandro" muito grande!
— Perdão! O sr. não me pode insultar...
— Qual o quê! continuou o Delegado no auge da cólera. Não há patife, tratante, malandro por aí, que não se diga estudante...
Eu começava a exaltar-me também, a sentir-me ofendido injustamente, agredido sem causa e sem motivo; contive-me, no entanto.
— Mas eu sou, asseguro-lhe...
— Qual o quê! Pensa que me embrulha... você o que é, é um gatuno, sabe?
Por aí, houve em mim o que um autor russo chamou a convulsão da personalidade. Todo eu me agitei, todo eu me indignei. Senti num segundo todas as injustiças que vinha sofrendo; revoltei-me contra todos os sofrimentos que vinha suportando. Injustiças, sofrimentos, humilhações, misérias, juntaram-se dentro de mim, subiram à tona da minha consciência, passaram pelos meus olhos e então expectorei sacudindo as sílabas:
— Imbecil!
— Que diz? perguntou ele com autoridade.
— Que você é um imbecil, ouviu?
Não me disse mais nada; não se lembrou mesmo de determinar que o escrivão lavrasse auto de flagrante. Ergueu-se cheio de fúria, esperei-o pronto para jogar os sopapos; mas o terrível delegado ia unicamente à porta para ordenar que me metessem no xadrez.
Fui para o xadrez convenientemente escoltado. Pelo caminho, tudo aquilo me pareceu um pesadelo. Custava-me a crer que, no intervalo de horas, eu pudesse ter os entusiasmos patrióticos do almoço e fosse detido como um reles vagabundo num xadrez degradante. Entrei aos empurrões; desnecessários aliás, porque não opus a menor resistência. As lágrimas correram-me e eu pensei comigo: A pátria!