Reflexões sobre a Vaidade dos Homens (1980)/CLIV
Não há pois certeza alguma em nada. A história profana (porque esta é somente a de que falamos) parece que não foi feita para instruir, senão para enganar. Os Autores não se contentaram com enredar o mundo enquanto vivos; quiseram ter o maligno divertimento de deixar na história uma ocupação de estudar enganos; nem todos o fizeram por malícia, mas por simplicidade. Essa mesma história é donde a vaidade da Nobreza toma o seu princípio, e donde tira as provas de que mais se desvanece; quanto mais antiga a história é, tanto é mais esclarecida a Nobreza, que se funda nela. Esta sorte de vaidade é universal. As ideias quiméricas sobre antiguidades, não só é própria a cada um dos homens, mas a todas as gentes, e nações; e com tal fatuidade, que algumas vão buscar a sua origem, antes que o mundo habitável tivesse a sua, e daquele modo eles começaram primeiro do que o mundo. Neste delírio de antiguidade, e por consequência de Nobreza, entraram os Citas, os Frígios, os Persas, e os Egípcios; estes não pretendiam menos do que sessenta mil anos de antiguidade; e nesta forma, que nação poderia competir com ela naquela parte? Nem os Chinas, excessivos em tudo, deitam as suas pertensões tão longe. Assim são os delírios que os homens excogitam: uns para se enobrecerem a si, outros para enobrecerem os seus. Não há meio algum de que aquela vaidade se não sirva; ou seja imaginário, ou falso, tudo serve a quem se quer fazer ilustre; porque crê que o ser ilustre é ser muito mais que homem, ou ao menos alguma cousa mais. O segredo consiste em saber introduzir o engano, e sobretudo em defender o erro, e prevenção, de que os homens podem ser diversos, ainda na mesma razão de homens.