Reflexões sobre a Vaidade dos Homens (1980)/CVI
Sucede muitas vezes mudar o amor, primeiro que a fermosura mude; isto dizem que faz o amor ingrato; porém a mudança quási sempre é culpa da beleza, e não do amor. Naturalmente e fermosura é soberba, vaidosa, ímpia, e arrogante; não só refusa, mas despreza; não só desdenha, mas injuria. Um objecto amável basta para produzir amor, mas não basta para o conservar; o amor nasce facilmente, mas dura com dificuldade; porque o império da beleza sempre foi tirano, e sem brandura, não há domínio permanente. O amor é acto de um movimento repentino; a conservação dele vem por discurso, por isso a primeira cousa é fácil, e dificultosa a outra. Não há encanto perpétuo; o do amor também tem fim, e enquanto dura, é por intervalos; e ainda que o amor seja pronto, e arrebatado em conquistar, por isso mesmo nada tem seguro; porque o que se toma precipitadamente, precipitadamente se larga; daqui vem que um moderado amor costuma ser durável; o que é excessivo, a sua mesma violência o acaba; a tormenta forte nunca dura. Mas não sei se pode haver moderação no amor. Há muitas cousas, em que a moderação é contrária à natureza delas, e em que a abstinência custa menos do que o uso limitado. O amar uma cousa só parece que é mais penoso, que o não amar nada; porque com efeito o abster é menos dificultoso, que o conter; por isso a prisão de algum modo molesta menos, que uma liberdade restrita: o usar das cousas com regra, traz consigo uma espécie de aflição; o não usar de nenhuma sorte, o que traz é esquecimento. Podemos fazer hábito de não ter, ou de não amar, porém não o podemos fazer de amar, ou ter debaixo de algum preceito: tudo o que recebemos, ou se nos dá com condição, parece-nos violento: olhamos menos para a parte, em que a cousa é livre, que para aquela, em que o não é; a proibição sempre nos deixa suspensos, e como magoados; porque o nosso desejo não tem actividade naquilo que é já nosso, mas sim naquilo que o não é, e que não pode, ou não deve ser; o que se permite não parece tão bem como o que se nega; o muito que se concede, não consola do pouco que se proíbe; por isso o alheio nos agrada, porque nele achamos uma negação, ou limite do que é nosso. Vemos com saudade o tempo, que passou; esperamos o que há-de vir com ânsia, e para o presente olhamos com desgosto: assim devia ser, porque o tempo, que passou, já não é nosso; o que há-de vir não sabemos se será; e só o presente, porque é nosso, nos aborrece. O amor está seguro, enquanto dura a pretensão; o que o perde, é a propriedade: sustenta-se mais na dúvida, que na certeza; qualquer cousa, que procure, o anima, e desfalece, se lhe não falta nada. Isto não é só no amor; em tudo sucede o mesmo: todas as paixões se acabam, assim que se satisfazem; conseguido o fim de cada uma, logo ficam sem vigor, e amortecidas: ninguém espera o que possui, ninguém deseja o que já tem, e ninguém se desvanece muito daquilo que logra há muito tempo; e desta sorte o amor, o desejo, a esperança, e a vaidade acabam-se, quando alcançam; e deste modo perdemos as cousas todas as vezes que as chegamos a ter; ou ao menos perdemos o gosto, que nos vinha do desejo, do amor, da vaidade, e da esperança. Daqui vem, que para reprimir as paixões, nem sempre é bom meio o reprimi-las; na resistência parece que se formam, e fortificam mais; algumas nascem só da resistência, e não podem existir sem ela. Da dificuldade das cousas inferimos a excelência delas; o fazê-las fáceis, e sem oposição, é o mesmo que tirar-lhes a graça, que as fazia apetecíveis. Em todas as paixões se encontra a vaidade de querer vencer; não há vitória sem combate, e se a há, é sem glória, e sem merecimento. Contra um campo aberto não há desejo, nem ardor; a vaidade tem repugnância a entrar pacificamente, armada sim; a muralha incita, porque impede.