Reflexões sobre a Vaidade dos Homens (1980)/CXIV
Ama-se por vaidade, e também por vaidade não se ama. Diga-o aquela fermosura a quem um voto poderoso fez perder a liberdade. Não foi inspiração celeste a que a fez buscar a solidão de um Claustro; talvez foi um infeliz amor, a quem se opôs a vaidade. Cruel destino! Havemos de amar à vontade da vaidade, e não à vontade do amor? Mas que pouco dura o amor, quando não nasce do amor! Não há maior combate, que o que se dá entre a vaidade, e o amor; se este fica vencido, a mesma vaidade chora, e se arrepende; é vitória, que se forma do estrago do vencedor. Um amor desconsolado, em nada pode achar compensação; porque esta só cabe, quando há outra cousa, que valha o mesmo; ao amor não há cousa, que o iguale, nem valha tanto. Aquela mesma fermosura, a quem a vaidade dominante fez deixar o mundo, para a livrar de algum amor humilde, sim vive retirada no limitado espaço de uma prisão santa: mas que importa que essa prisão lhe tire a liberdade das acções, se lhe não há-de tirar a liberdade do desejo? Assim como não há ferros para o entendimento, também os não há para o coração; este ainda no meio da violência, e da tirania, sempre se conserva isento, e livre. Um véu preto sempre esconde, mas não muda, nem desfaz nada do que esconde; antes tudo aumenta mais, e tudo mostra ainda maior, e mais claro do que é. Uma Comunidade Religiosa coberta de véus, o que faz imaginar é que cada véu encobre uma beleza, e muitas vezes o que encobre, é uma fealdade enorme; o pensamento nesta parte é sempre favorável, porque debaixo daquelas sombras nunca supõe outras sombras, luzes sim: há cousas, que de se ocultarem, resulta o verem-se melhor; em vingança de um manto escuro, tudo o que está debaixo dele, se nos representa perfeito, e singular; aquela espécie de rebuço o de que serve é de avivar a imaginação, de a desanimar não: tudo o que se esconde, parece-nos admirável, só porque se esconde; de sorte, que o ocultar, é o meio de acreditar as cousas, e de dar-lhes mais valor. O mesmo é pôr-se aos olhos um obstáculo, que fazê-los penetrantes, e pô-los em uma actividade, que eles não têm naturalmente: a vista, que se embaraça, adquire maior força, à maneira de uma corda, cujo vigor aumenta à proporção, que a fazem fugir do arco; a mesma distância em que algumas cousas se põem, as fazem estar mais perto; e por este princípio, tudo o que se esconde, se mostra. Quem dissera, que o recato, e a modéstia, mais chamam do que desviam, mais servem de convidar, que de afastar! Quem foge, parece que quer que o sigam; quem deixa, parece que quer que o busquem: o mesmo é cobrir o rosto, que incitar mil vontades de o descobrir; a desconfiança faz nascer a instância, e o cuidado; o engano muitas vezes se evita só com não o presumir; e com efeito o retirar-se, e pôr-se em defesa, é o mesmo que dar um sinal de guerra; o que se guarda, e se esconde, é a primeira cousa, que se assalta; a liberdade do porto é o que o conserva livre de invasão.