Reflexões sobre a Vaidade dos Homens (1980)/CXL
Era preciso com efeito, que muitas vaidades concorressem, para poderem formar a vaidade da Nobreza; era preciso, que muitas vaidades se ajuntassem (todas subtis, e especulativas), para fazer que os homens cressem, que os acidentes do tempo, da fortuna, e da desgraça, se podiam de tal sorte infundir no sangue, que a um constituíssem sangue nobre, e a outro fizessem sangue vil. A Nobreza, e a vileza, são substâncias incorpóreas, porque são vãs; e se é verdade, que podem estar no sangue, será talvez por algum modo intelectivo, imaterial, e etéreo; mas parece que nem assim podia ser, porque aquilo que é vão, de nenhuma sorte existe. A inexistência da Nobreza ainda é menos, que a inexistência de uma sombra, porque esta ao menos é um nada que se vê; a imaginação pode fingir uma quimera, porém dar-lhe corpo, não; pode imaginar a quimera da Nobreza, porém introduzi-la nas veias nunca pode ser. Os homens enganam-se com o que imaginam; parece-lhes que o mesmo é imaginar, que formar, e que é o mesmo idear, que ser. O engano, ou a vaidade da Nobreza poderia ter lugar, se os homens assim como a quiseram pôr interiormente em si, se contentassem com a pôr de fora; isto é, se a fizessem consistir nas acções exteriores; perderam-se em buscar o sangue para assento da Nobreza; aquele engano ficou visível, e fácil de perceber. Todos sabem, que a imaginação não pode dar, nem tomar corpo: a ilusão do pensamento nunca pode ser mais do que ilusão. O sangue não está sujeito à opinião, só depende das leis do movimento, e da matéria; as distinções, que o pensamento considera, não passam do pensamento, nele ficam, só nele podem existir, no sangue não. A Nobreza, e a vileza, são nomes diferentes, mas não fazem diferentes sangues; estes são iguais em todos; e por mais que a vaidade finja, invente, e dissimule, tudo são imagens supostas, e fingidas; tudo são opiniões, que todos sabem que são falsas; tudo são sonhos de homens acordados. A verdade se ri de ver a gravidade, o gesto, e circunspecção com que as gentes tratam a matéria da Nobreza; e de ver que saibam como o sangue se enobrece, ao mesmo tempo que não sabem o como ele se faz; de sorte que ainda não conhecem, nem hão-de conhecer nunca a fábrica daquele líquido admirável, e presumem conhecer-lhe as qualidades; ignoram as qualidades certas, e visíveis, e cuidam que não ignoram as que são de um fantasia irregular, e que não constam mais que de uma ficção civil. Daqui veio o reduzir-se a arte àquele mesmo conhecimento, arte rara, e vasta, e que tem por objecto, não só o estado da sucessão dos homens, mas também o estado, ou situação da Nobreza deles. Em um breve mapa se vê facilmente, e sem trabalho, o que produziram muitos séculos; ali se acham colocados (como se estivessem vivos) os ilustres ascendentes da Nobreza humana; e tudo com tal ordem, e repartição tão clara, que em um instante se compreende a arte; e só com se ver, se sabe; no mesmo mapa, ou globo racional, se encontram descritas muitas linhas, e distintos lados; e nestes introduzidos subtilmente outros lados errantes, desconhecidos, vagos, e duvidosos; as regiões, que ali se consideram, têm aqueles frutos, que o tempo consumiu; as árvores, os troncos, e os ramos, são de donde estão pendentes Varões ilustres, armas, escudos, títulos, troféus, mas tudo sem acção, nem movimento; tudo ali se pôs, menos para exemplo das virtudes, que para delícia da vaidade; menos para incitar o desejo de merecer, que para servir de lisonja à ociosidade da memória; menos para estímulo da imitação, que para despertar o desvanecimento. Nunca a vaidade achou em um espaço tão pequeno, maior contentamento. Aquele é o lugar mais próprio, em que a Nobreza se mostra vestida de pompa, e de aparelho, ali é finalmente donde a vaidade como em um labirinto famoso, e agradável intenta medir o ar, pesar o vento, apalpar as sombras.