Reflexões sobre a Vaidade dos Homens (1980)/CXXV
Os que crêem que sabem mais que os outros, ou se enganam, ou se persuadem bem: se se enganam, o mesmo engano lhes serve de ludíbrio; se se persuadem bem, a vaidade da ciência os faz tão ferozes, e severos, que ficam sendo insuportáveis. A ciência humana comummente se reveste de um ar intratável; imagem tosca, desagradável, e impolida. A especulação traz consigo um semblante distraído, e desprezador; quanto melhor é uma ignorância civil. Toda a ciência se corrompe no homem; porque este é como um vaso de iniquidade, que tudo o que passa por ele, fica inficionado: as cousas trabalham por se acomodarem ao lugar donde estão, e por tomarem dele as propriedades, só com a diferença, de que as cousas boas fazem-se más, porém estas não se fazem boas. Nas sociedades, o mal é mais comunicável; a perdição é mais natural; o que é bom, mais depressa tende a perder-se, que a melhorar-se; os frutos da terra quando chegam ao estado de madureza, nem persistem nele, nem retrocedem para o estado de verdura; antes caminham até que totalmente se arruinem; por isso o último grau de perfeição, costuma ser o primeiro na ordem da corrupção. Naquilo em que a Providência não predefiniu um ser permanente, e inalterável, a natureza não cessa de mover-se enquanto não desfaz, enquanto não corrompe, e enquanto não acaba. A ciência acha no homem propensão para a vingança, para a ira, para a ambição, e para a vaidade; nenhuma destas inclinações lhe tira, antes as conforta; porque a ciência não vem fazer um homem novo; assim como o acha, assim mesmo o deixa. As notícias, que alguns foram alcançando pela sucessão dos tempos, e que para as fazerem respeitáveis, e as conservarem em uma majestade primitiva, as foram caracterizando com nomes pomposos, e pouco inteligíveis, uns Latinos, outros Gregos, outros Arábicos, como Filosofia, Geometria, Álgebra, essas tais notícias a que chamam ciências, não se adquirem brevemente, nem é trabalho de um dia, mas de muitos anos, e de toda a vida; e desta sorte antes que qualquer ciência se introduza em nós, tem tempo para se adjectivar, e familiarizar connosco, e para se consubstanciar com todos os nossos vícios, e com todas as nossas inclinações; e nesta forma quando as ciências chegam, não é para nos emendar, porque já vêm tarde; e se então nos emendamos, essa emenda não é efeito da ciência, mas da nossa debilidade. Os homens mais facilmente se mudam, do que se emendam; quem muda é o tempo, a ciência não. Comummente o que nos faz deixar os vícios, é a impossibilidade de os conservar; e ainda então o que perdemos, é o uso deles, e não a vontade; largamos o exercício, e não o afecto; desistimos da ocupação, e não da inclinação; e finalmente nós não somos os que deixamos os vícios, eles são os que nos deixam; nós os seguimos de longe, e por mais que os sigamos cansados, nunca os perdemos de vista; quando não podemos ir, os objectos nos arrebatam; a memória dos nossos vícios passados, nos está servindo de vício presente ; e quem sabe quais são os que obram com mais vigor, e mais activamente? A imaginação não é cousa tão sem corpo como nos parece; talvez que não tenha de menos que o ser mais subtil, e desta qualidade o que pode resultar, é o ser mais durável. Não sei se houve já quem reparasse, que o gosto dos sucessos são menos atractivos na realidade, do que são depois lembrados; a complacência não é tão forte, quando a primeira vez se mostra na verdade, como quando se repete na lembrança, e se representa sempre; o susto do perigo não é tão grande no instante que sucede, como é depois que se recorda, e isto é porque o corpo é susceptível de um pasmo tal, que fica como absorto, imóvel, e insensível; só a imaginação não se entorpece facilmente, por isso recebe as impressões do gosto, e do pesar, em toda a sua força, e em toda a sua extensão; o pensamento é o lugar em que a natureza se concentra, e fortifica; daqui vem que tudo quanto se sente, ou se vê com o pensamento, fica sendo mais visível, e mais sensível. Não é pois a ciência a que nos ensina, o tempo sim; a ciência é como um cristal claro, que posto sobre uma má pintura, sim lhe dá lustro, mas não a faz melhor, nem de mais valor; a luz que é símbolo da perfeição, não faz mais perfeito nada do que alumeia; cada cousa guarda o seu defeito original; e assim devia ser, porque a natureza de cada cousa também se compõe do seu defeito, e este quem lho tira, desmancha a mesma cousa, porque a desune, e a separa: em qualquer composto não só é parte principal o que há nele de excelente, mas também aquilo que tem de inferior; o dividi-lo ou emendá-lo seria o mesmo que perdê-lo: em um medicamento também entra o simples amargoso, e este se se tira, fica o remédio sem virtude. Tudo é singular na sua espécie: o verdadeiro ser das cousas não depende da aprovação do nosso gosto; de parecer mal, não se segue que o seja; as cousas menos estimáveis, e ainda as mais aborrecidas, tiveram famosos Apologistas; nós regulamos tudo pela nossa sensibilidade, e nesta é que costuma haver o engano; isto vem a ser o mesmo que pesar por um peso falso; medir por uma medida errada; e calcular por um compasso incerto; a infidelidade está no instrumento que pesa, e que mede; tudo o que julgamos, é segundo a nossa razão, e segundo, a nossa ciência: miserável instrumento, mil vezes falso, e enganoso! A ignorância tem produzido menos erros que a ciência; esta o que tem de mais, é que sabe introduzir, espalhar, e autorizar; e segundo a nossa vaidade o errar importa pouco; o ponto é sustentar o erro; e nesta forma o que a ciência nos traz, é sabermos errar com método.