Reflexões sobre a Vaidade dos Homens (1980)/LXVI
A crueldade nem sempre vem de um ânimo bárbaro, e feroz; muitas vezes é um monstro, que nasce da vaidade; considere-se o punhal cravado em um coração, que ainda palpita, e donde o sangue que sai, e vai regando a terra, ali se congela em parte, aqui ainda corre fumando, e cheio de espírito, e calor; finalmente considere-se um cadáver agonizante, e convulsivo, e donde as feridas umas sobre as outras, apenas mostram lugar livre de golpe; tudo forma um espectáculo horroroso: o tirano que é o mesmo executor da crueldade, por mais que no semblante inculque um aspecto duro, interiormente se estremece, e se não mostra que se aflige, é porque a vaidade o anima contra o pavor que a natureza inspira. Ideou a vaidade ser a tirania um atributo do poder: que mais é necessário para que os homens, queiram medir a grandeza do poder pelo excesso, e proporção da tirania? Até nos desvanecemos da mesma barbaridade, chamamos à compaixão fraqueza, e à inumanidade valor.