Reflexões sobre a Vaidade dos Homens (1980)/LXXX
A fraqueza dos nossos sentidos nos impede o gozar das cousas na sua simplicidade natural. Os elementos não são em si como nós os vemos: o ar, a água, e a terra a cada instante mudam, o fogo toma a qualidade da matéria que o produz, e tudo enfim se altera, e se empiora para ser proporcionado a nós. A virtude muitas vezes se acha com mistura de algum vício; no vício também se podem encontrar alguns raios de virtude; incapazes de um ser constante, e sólido, apenas se pode dar em nós virtude sem mancha, ou perfeito vício: a justiça também se compõe de iniquidade, semelhante à harmonia, que não pode subsistir sem dissonância, antes com correspondência certa, a dissonância é uma parte da harmonia. Vemos as cousas pelo modo com que as podemos ver, isto é, confusamente, e por isso quási sempre as vemos como elas não são. As paixões formam dentro de nós um intrincado labirinto, e neste se perde o verdadeiro ser das cousas, porque cada uma delas se apropria à natureza das paixões por onde passa. Tomamos por substância, e entidade, o que não é mais do que um costume de ver, de ouvir, e de entender; a vaidade, que de todas as paixões é a mais forte, a todas arrasta, e dá ao nosso conceito a forma, que lhe parece; o entendimento é como uma estampa, que se deixa figurar, e que facilmente recebe a figura, que se lhe imprime. A vaidade propõe, e decide logo, de sorte que quando as cousas chegam ao entendimento já este está vencido; o que faz é aprovar a preocupação anterior, que a vaidade lhe introduz, e assim quando a vaidade busca o entendimento é só por formalidade, e só para a defender, e autorizar, e não para aconselhar. O discorrer com liberdade, supõe uma exclusão de todas as paixões; que os homens se possam isentar de algumas, pode ser, mas que de todas fique isento ao mesmo tempo, é mui difícil. Tudo quanto vemos, é como por uma interposta nuvem; o que imaginamos, também é como por entre o embaraço de mil princípios diferentes, incertos, e duvidosos; e quando nos parece que a nossa vista rompeu a nuvem, e que o nosso discurso desfez o embaraço, então é que estamos cegos, e então é que erramos mais. A vaidade nos tem em um contínuo movimento, e como é paixão dominante em nós, a todas as mais sujeita, e prevalece a todas: semelhante ao impulso das ondas, a que não resiste o frágil de uma nau, quando o mar embravecido a faz correr com a tormenta; o navegante parece que busca o perigo, porque não se opõe à corrente das águas, antes as segue, e só assim escapa ao naufrágio. Quantas vezes o buscar o precipício é o único meio de o evitar! A vaidade é a tormenta, ou o mar tempestuoso, que nos move; o deixar de a seguir, nem sempre pode ser, nem é acertado sempre; porque a vaidade é um mal comum, e entre os homens é culpa o não participar de um contágio universal; é crime o conservar-se puro no meio da impureza; essas mesmas águas nos ensinam: todas se movem; o furor, com que se quebram, as conserva; o seu repouso seria o mesmo que a sua corrupção.