Reflexões sobre a Vaidade dos Homens (1980)/XCIX
Nos primeiros anos da vida toda a variedade nos atrai; entramos neste grande teatro cheios de gosto, e contentamento, sem experiência das impressões da dor, e ignorando os efeitos da vaidade; por isso não temos então, nem pensamentos que aflijam, nem cuidados que mortifiquem; não nos combatem as lembranças da morte, e se vemos os seus triunfos, ou já nos epitáfios, ou já nas pompas fúnebres, parece-nos que está tão longe de nós aquele estrago, que na mesma distância, em que a nossa ideia o considera, se confunde e desvanece o horror. Que feliz ignorância, e que venturoso descuido! Em contínua travessura passamos aqueles anos, em que os nossos espíritos, ou por mais vivos, ou por mais alegres, apenas cabem em nós. Os campos, as flores, as aves, os rios, tudo nos serve de jogo inocente, e de festiva ocupação: estes são os ensaios, e prelúdios, com que o tempo dispõe a nossa dócil inocência, e com que um amor universal a tudo quanto vemos, depois só se reduz àquele amor, que tem por objecto a duração do mundo, ou a nossa mesma reprodução; por isso a poucos passos começamos a sentir um novo impulso; aquele agrado comum, com que víamos as cousas, já se distingue, olhando com especialidade para algumas, e com indiferença para as mais; como se estas fossem destinadas para entreter as nossas primeiras atenções, sendo só umas o para que nos dirigia o fim da natureza.