A doença de Raquel era grave; durante alguns dias chegaram a recear um desenlace funesto. Os velhos pais quase enlouqueceram, quando o médico os preparou para a terrível catástrofe. A menina percebeu o seu estado, mas nem o medo da morte, nem a saudade da terra lhe fez doer o coração. Morria como flor que era. A mágoa era toda para os que a viam assim condenada sem remédio.
O médico assistente dera à moléstia um nome tirado não sei se do grego, se do latim. Na opinião da mãe, havia alguma coisa mais do que o nome e a moléstia; havia uma inexplicável melancolia, anterior à doença, uma espécie de tédio precoce da vida, se não era antes alguma esperança malograda, — ou mais claramente, alguma afeição sem esperança.
Para obter dela a confissão que imaginava, tinha D. Matilde o necessário tato e doçura: era mulher e mãe. Mas, ou porque nada houvesse realmente, ou porque quisesse levar consigo o segredo da sua melancolia, Raquel nenhuma confissão lhe fez.
Dois dias depois da visita de Lívia, Félix foi à casa do coronel. O coronel estava na sala, mergulhado numa poltrona, com os olhos parados e as feições abatidas pela vigília e pela dor. Quis levantar-se quando Félix apareceu à porta, mas este correu para ele e impediu o movimento.
— Soube anteontem do estado de sua filha, disse Félix sentando-se ao lado do velho pai. Disseram-me que estava mal...
— Mal, repetiu o coronel, definitivamente mal. A pouca esperança que tínhamos veio tirar-no-la o médico. O senhor não sabe o que é perder assim metade da alma.
Félix disse algumas palavras banais de consolação, e chegou até a falar de esperança; mais ainda que a esperança fala sempre ao coração dos desgraçados, o bom velho em outra coisa não acreditava mais que na morte.
Algum tempo estiveram calados; enfim o coronel rompeu o silêncio:
— Raquel é muito sua amiga, disse ele. Duas vezes perguntou pelo senhor.
— Desde quando está doente?
— De cama está há quinze dias; mas já sofria antes disso. A princípio não me deu muito cuidado; a moléstia, porém, agravou-se rapidamente, e tem ido a pior.
Foram interrompidos pelo médico assistente. Tinha este sido companheiro de Félix na escola. Ao vê-lo ali suspeitou que o tivessem mandado chamar; Félix apressou-se a explicar o motivo da sua visita.
— Em todo o caso, doutor, disse o outro, aproveito as suas luzes, e façamos, se lhe parece, uma conferência.
O coronel foi ver se Raquel estava acordada; voltou pouco depois e acompanhou os dois médicos à alcova da doente.
Félix foi o primeiro que assomou à porta; parou alguns instantes, impressionado com o espetáculo que se lhe oferecia.
Sentada à cabeceira da cama estava D. Matilde, descorada e abatida, com os olhos túmidos, e porventura cansados de chorar. Aos pés da cama via-se uma moça amiga da infância de Raquel, e sua dedicada enfermeira nesta ocasião. Ambas, triste e silenciosamente, contemplavam a doente.
Raquel estava branca como a fronha do travesseiro em que descansava a formosa cabeça. Tinha os lábios entreabertos e a respiração curta e difícil. O pequeno rumor que fizeram os médicos ao entrar um pouco a sobressaltou. Raquel abriu os olhos, que ardiam de febre.
Quando Félix se aproximou do leito e tomou o pulso da moça, esta olhou para ele e fez um gesto de espanto. Olhou depois em volta de si, como se duvidasse do lugar em que se achava. D. Matilde inclinou-se para a filha e disse:
— É o Dr. Félix.
Raquel olhou outra vez para Félix, com aquele sorriso apagado e triste dos doentes e murmurou:
— Obrigada!
— Como se sente? perguntou Félix.
— Melhor, disse ela com uma voz tão fraca que parecia um suspiro.
— Deveras melhor?
Raquel fez um gesto de indiferença e não respondeu.
— Vamos lá, não desanime, disse Félix, e sobretudo não faça entristecer seus pais, que lhe querem tanto.
Félix examinou a doente, fazendo-lhe algumas perguntas, a que ela debilmente respondia. Quando ele cessou de a interrogar, a moça murmurou:
— Morro, não é?
— Não, disse Félix, não há de morrer, não deve morrer. Tem ainda vida larga, mas é preciso ânimo.
Raquel fez um gesto de quem não acreditava nas boas palavras do médico, e voltou os olhos para a mãe. D. Matilde tinha os seus cravados em Félix, como se lhe quisesse ler no rosto a sentença da filha. A doente pareceu adivinhar o pensamento, e disse com esforço:
— Por que não dá as suas consolações a mamãe?
A conferência não durou muito tempo. Félix começou opinando por uma modificação no tratamento até ali seguido, e declarou que não julgava todas as esperanças perdidas. O colega concordou facilmente na alteração pedida por Félix, tanto mais, disse ele, quanto as esperanças eram nenhumas.
Em sua opinião, Raquel estava irremediavelmente perdida. Não era opinião aérea e infundada; ele podia demonstrá-la com argumentos cabais e irrefutáveis. Demonstrou-o efetivamente, durante vinte minutos, com a justa apreciação dos fatos, os dados seguros da ciência, e uma dialética tão cerrada que era impossível fazer-lhe a menor objeção.
Quinze dias depois, entrava Raquel em convalescença.
No sentir dos pais, era Félix o salvador da filha. Fora ele quem lhes restituíra a esperança, e a realizara com os seus bons conselhos e diligente desvelo.
O colega de Félix, para quem o restabelecimento da moça era a destruição de todas as noções médicas recebidas, ficou profundamente surpreendido com esse resultado. Em todo caso, era impossível negá-lo; limitou-se a aplaudi-lo, e quando a moça entrou em convalescença aconselhou os pais que a mandassem para algum arrabalde da cidade, a fim de respirar ares melhores.
Não podia vir mais a propósito o conselho. Lívia mudara-se para as Laranjeiras. A idéia da mudança era de Viana, que um dia a propôs à irmã, e fora aprovado por ela. A casa ficava pouco acima da de Félix, do lado oposto.
Era um prédio elegante, levantado no meio de uma chácara, não extensa nem esmeradamente tratada. Viana, entretanto, organizara um programa de reforma, que prometia executar pontualmente. Seu contentamento parecia não ter limites; além de preferir aquele bairro ao outro em que morava, havia a circunstância de ir ficar ao pé da casa de Félix, — o que era já meia felicidade, dizia ele.
Lívia aprovara a mudança sob a influência de igual idéia. Aqueles últimos dias tinham sido de plena e deliciosa paz. Seus projetos de futuro eram imensos; delineava uma vida independente de todas as escravidões sociais, vida exclusiva deles, cheia de todos os prestígios da poesia e do amor. Às vezes receava que esses sonhos fossem apenas sonhos. Ainda assim não os dera por nenhum preço deste mundo.
Estavam então nos primeiros dias de outubro; o casamento fora marcado para meados de janeiro. Marcado, entenda-se bem, apenas entre os dois, porque Félix conseguira da viúva a promessa de que a notícia seria dada nas vésperas do acontecimento.
— Mas a razão deste segredo? perguntou Lívia depois de lhe prometer o que pedia.
— Um capricho.
A razão verdadeira era a vacilação do seu espírito; mas a que ele deu contentou perfeitamente a moça.
— Se eu tivesse o teu coração, disse ela, desconfiava desta exigência; mas, vê lá, eu creio em ti.
Estavam sós na chácara; Viana, fiel ao seu programa de não perturbar os dois namorados, foi meditar a alguma distância nas reformas que pretendia fazer. Caminhavam os dois calados e distraídos, ou melhor, concentrados em si mesmos. De repente, a viúva levantou a cabeça e disse como continuação das suas anteriores palavras:
— Há contudo ocasiões em que esta confiança parece abalar-se, não porque eu duvide de ti, mas porque duvido do destino. Já te disse que sou supersticiosa, — defeito das mulheres e das crianças. Estremeço algumas vezes, quando encaro o futuro, e, sem saber por que, pergunto a mim mesma qual será o fim de tudo isto. Desmaios apenas, e raros, de um coração que ambiciona, talvez, mais do que poderia obter.
— Não te parece que eu esteja emendado? disse Félix sorrindo. Há quantos dias não há sequer...
— Cala-te! interrompeu Lívia tocando-lhe os lábios com os dedos. Tenho medo de te ouvir falar assim.
E depois de um instante de silêncio:
— Não é o teu coração que me faz tremer; o teu coração é bom. Não é também o teu espírito, apesar de caprichoso, visionário, inconstante. Receio do futuro, à vista do passado.
— Do passado? perguntou Félix estacando o passo.
Lívia suspirou.
— Que houve de mau no teu passado? continuou o médico fitando nela um olhar perscrutador.
— Tudo.
Havia perto um velho sofá de vime. Lívia encaminhou-se lentamente para ele e sentou-se. Félix contemplou-a algum tempo do lugar em que ficara. Já não sorria; a dúvida ensombrava-lhe os olhos. Enfim, deu alguns passos e parou em frente dela.