Lívia não percebeu logo o amor de Meneses; mas, era impossível que tarde ou cedo o não suspeitasse. Não se fingiu admirada quando ele lho confiou depois de algum tempo de assiduidade nas Laranjeiras. Nem se admirou nem se irritou; além de não ser motivo para cólera, havia entre ambos, como Félix dissera um dia, certa conformidade de sentir e pensar, que de algum modo os vinculava.
A resposta que lhe deu foi certamente fria e decisiva, não desdenhosa nem severa. Quando viu porém a tristeza que lhe causou, esqueceu de todo as formalidades convencionais e necessárias; procurou suavizar as penas do moço. Tirou-lhe toda a esperança presente ou futura; não poderia amá-lo nunca. A amizade, porém, que lhe tinha, talvez o consolasse do desengano. Isso apenas; não devia simular um amor que não sentia nem acenar-lhe com uma felicidade que lhe não podia dar.
— Que me não pode dar! repetiu Meneses apegando-se ainda a uma esperança fugitiva; e se eu esperar que algum dia soe a hora da felicidade que me nega? Nada depende de nós; os próprios movimentos do coração parecem nascer de mil circunstâncias fortuitas, se não é que os rege uma lei misteriosa, e essa... Quem sabe? um dia, talvez, — ouso crê-lo, — um dia sentirá que a simpatia que lhe inspiro se transforma, e...
— Basta! interrompeu Lívia em tom imperioso.
Meneses calou-se; ela continuou:
— O amor não é isso que o senhor diz; não nasce de uma circunstância fortuita, nem de uma longa intimidade, é uma harmonia entre duas naturezas, que se reconhecem e completam. Por mais semelhante que seja o nosso espírito, sinto que Deus não nos fez para que o amor nos unisse.
Meneses não estava para estas averiguações teóricas; é até duvidoso que prestasse atenção às últimas palavras da viúva. O quimérico edifício que tão laboriosamente construíra via-o ele desfazer-se em fumo, e esta só impressão o dominava agora.
Decorreu algum tempo de completo e acanhado silêncio. Estavam encostados à janela que dava para o jardim. Meneses não ousava levantar os olhos para ela; não era só natural vexame da posição em que se achava, era também medo de contemplar ainda uma vez o bem que perdia. Lívia compreendia esse estado da alma do moço. Lastimava, quem sabe? não ser ele o escolhido do seu coração. Era o mais que lhe podia dar, e era muito. Enfim:
— Fiquemos amigos, disse ela. A amizade lhe fará esquecer o amor; é mais serena que ele, e talvez menos exposta a perecer. Conheço que sou egoísta; peço-lhe uma coisa que só a mim aproveitará. Amigos, não lhe será difícil achá-los; eu não os acharia tão facilmente nem tais como o senhor.
Meneses tocou levemente na mão que ela lhe estendeu ao terminar estas palavras. O pedido que ela lhe fazia era mais afetuoso que judicioso; a um coração desenganado não há imediatamente compensações possíveis nem eficazes consolações. A bondade da viúva o comoveu todavia; ia agradecer-lhe quando Raquel entrou na sala.
Raquel estacou. Ambos estavam acanhados. A viúva foi a primeira que rompeu o silêncio chamando a filha do coronel. Que queria dizer o sorriso benévolo, mas sonso, que lhe pairava nos lábios? Não o viu Meneses que olhava para fora, mas viu-o a viúva e estremeceu.
Meneses não voltou lá durante uma semana; prolongaria a ausência, se o amor, fecundo de ilusões, lhe não houvesse enchido o peito de esperanças novas. Lívia tratou-o com a costumada afabilidade, talvez com afabilidade maior. Como a confiança de Félix não se havia alterado, Lívia usava assim uma dissimulação honesta, por simples motivo de piedade e gratidão. Estava no seu caráter esse modo de interpretar as coisas, e de as tratar assim sem grande respeito às conveniências sociais. Profanas, diria eu antes, se quisesse exprimir os verdadeiros sentimentos da viúva, que achava naquela obra de simpatia uma espécie de missão espiritual.
Às missionárias daquela espécie, se as há, desejo-lhes maior perspicácia ou mais feliz estrela. Nem a estrela nem a perspicácia da nossa heroína estavam acima do seu coração. O sentimento que a impelia era bom; o procedimento é que era errado. Ela não atentava nisso. Interrogava o rosto do médico, mais confiante e alegre que nunca, e só isto lhe bastava a seus olhos. Fossem eles menos namorados, e veriam que a tranqüilidade de Félix era tão exagerada e fora dele, que não podia ser sincera.
A esses erros e ilusões, que podiam conter os elementos de um drama não remoto, veio juntar-se ainda a ilusão de Raquel. Esta aplaudia sinceramente os sentimentos que atribuía à viúva em relação a Meneses; o sorriso com que os surpreendera não queria dizer outra coisa. Fê-lo sentir um dia à viúva; a energia com que ela lhe respondeu mais a persuadiu ainda. Lívia quis então referir-lhe tudo, o verdadeiro objeto do seu amor e o seu próximo casamento; mas, posto que a idade não as separasse muito, Lívia considerava-a ainda criança e reprimiu o seu primeiro impulso.
Raquel ficou com as suas suspeitas.
Perdoemos agora à inexperiência da boa moça, — criança, como dizia a viúva — a leviandade com que insinuou ao médico as suspeitas que alimentava. Fê-lo por meio de alusão delicada e fina numa ocasião em que o pedia a conversa. O golpe foi profundo; a prova pareceu decisiva desta vez.
Raquel notou a impressão do médico. O sorriso inocente e brincão que lhe entreabria os lábios repentinamente se lhe apagou. Félix olhava para ela sem ver a mudança que se lhe havia operado. Viu-a enfim, mas não a entendeu. Tentou fazer-se galhofeiro como sempre fora com ela; conseguiu fazê-la sorrir.
Os dias que se seguiram a este foram de triste provação para a viúva. Sabemos já que o ciúme de Félix era às vezes ríspido. Nunca o fora mais que desta vez. Longas cartas trocaram ambos, amargas as dela, as dele friamente cruéis e chocarreiras. Félix não lhe disse logo a causa desta nova crise: adivinhou-a Lívia, e tudo lhe contou lealmente, sem lhe negar a boa intenção com que tratava o coração de Meneses. Era mostrar-se muito pouco mulher. Félix viu em tudo aquilo um tecido de absurdos.
O que lhe disse então foi o transunto das cartas que lhe escrevera. Grosseiro, irônico, incoerente, tudo isso foi nas palavras com que fulminou a pobre senhora.
Lívia não protestava. Quis interrompê-lo uma vez; quando ele acabou nada achou que lhe merecesse resposta. Estavam na sala. Olhou assustada para todas as portas, deixou-se cair frouxamente numa cadeira e tapou o rosto com as mãos.
Félix deu um passo para ela; o movimento era bom, mas o arrependimento veio logo.
— Adeus! disse ele.
A moça descobriu o rosto.
— Félix! exclamou ela.
O médico parou alguns instantes. Lívia levantou-se e foi a ele arrebatadamente. Chegou a pegar-lhe numa das maõs, abatida e lacrimosa ia começar uma última súplica. Ele porém puxou a mão violentamente, olhou para ela, e depois de longo silêncio, repetiu:
— Adeus!