Reticências (Álvaro de Campos)
- Arrumar a vida, pôr prateleiras na vontade e na ação.
- Quero fazer isto agora, como sempre quis, com o mesmo resultado;
- Mas que bom ter o propósito claro, firme só na clareza, de fazer qualquer coisa!
- Vou fazer as malas para o Definitivo,
- Organizar Álvaro de Campos,
- E amanhã ficar na mesma coisa que antes de ontem — um antes de ontem que é sempre...
- Sorrio do conhecimento antecipado da coisa-nenhuma que serei.
- Sorrio ao menos; sempre é alguma coisa o sorrir...
- Produtos românticos, nós todos...
- E se não fôssemos produtos românticos, se calhar não seríamos nada.
- Assim se faz a literatura...
- Santos Deuses, assim até se faz a vida!
- Os outros também são românticos,
- Os outros também não realizam nada, e são ricos e pobres,
- Os outros também levam a vida a olhar para as malas a arrumar,
- Os outros também dormem ao lado dos papéis meio compostos,
- Os outros também são eu.
- Vendedeira da rua cantando o teu pregão como um hino inconsciente,
- Rodinha dentada na relojoaria da economia política,
- Mãe, presente ou futura, de mortos no descascar dos Impérios,
- A tua voz chega-me como uma chamada a parte nenhuma, como o silêncio da vida...
- Olho dos papéis que estou pensando em arrumar para a janela,
- Por onde não vi a vendedeira que ouvi por ela,
- E o meu sorriso, que ainda não acabara, inclui uma crítica metafisica.
- Descri de todos os deuses diante de uma secretária por arrumar,
- Fitei de frente todos os destinos pela distração de ouvir apregoando,
- E o meu cansaço é um barco velho que apodrece na praia deserta,
- E com esta imagem de qualquer outro poeta fecho a secretária e o poema...
- Como um deus, não arrumei nem uma coisa nem outra...