I Parte

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Na Amazônia Terra sem História

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Rios em Abandono

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O geógrafo norte-americano Morris Davis revelou o “ciclo vital” dos rios. Era uma concepção revolucionária; e não houve cientista jungido à enfezada geografia descritiva, dominante ainda entre nós, que se não escandalizasse ante o conceito desassombrado do yankee. Mas o antagonismo foi passageiro e frágil. Uma simples monografia, Rivers and Valleys of Pennsylvania, deslocou, de golpe, desde 1889, toda a fortaleza inerte da rotina; e firmou um novo rumo ao critério geográfico, não já apenas pelo associar à forma a estrutura dos terrenos, completando os facies inexpressivos das superfícies com os elementos geológicos, senão também esclarecendo a gênese dos mais breves acidentes e descobrindo nas linhas pinturescas da móvel fisionomia da terra a expressão eloqüente das energias naturais que a modelaram e sem cessar a transfiguram. Por fim ninguém mais estranhou que Morris Davis, impelido aos últimos corolários da nova doutrina, se abalançasse a uma espécie de fisiologia monstruosa e descrevesse dramaticamente as complexas vicissitudes da existência milenária dos fartos cursos de águas, mostrando-no-los com uma infância irrequieta, uma adolescência revolta, uma virilidade equilibrada e uma velhice ou uma decrepitude melancólica, como se eles fossem estupendos organismos sujeitos à concorrência e à seleção, destinados ao triunfo, ou ao aniquilamento, consoante mais ou menos se adaptam às condições exteriores.

Não acompanharemos o genial biógrafo dos rios pensilvânicos no explanar a teoria admirável, que é o caso impressionador de uma entrada triunfante — ou de uma rush atrevida — da imaginação e da fantasia nos remansos da ciência. Basta-nos notar que ela foi aceita em toda a linha e é infrangível, esteando-se em dados indutivos e seguros.

Todas as caudais, de feito, atravessam períodos inevitáveis, de ritmos uniformes e constantes, malgrado a variabilidade do teatro em que se operam: a princípio indecisas, errantes e frágeis, derivando ao acaso, ao viés dos pendores, como à procura de um berço em cada dobra do chão, e acumulando-se nos numerosos lagos, incoerentemente esparsos, onde repousam; depois, definidas nas primeiras linhas de drenagem mais estáveis e fundas para onde convergem, adensadas, as chuvas, formando-se o aparelho das correntes, reprofundando-se os leitos esboçados e iniciando-se com a energia tumultuária das cachoeiras o choque secular com as asperezas da terra, longo tempo; até que, extintos os empeços estruturais, estabelecido um leito e definido um traçado, o rio se constitua, com os seus afluentes fixos, um declive contínuo em curvaturas regulares, um thalweg ajustado à contextura do solo e à diferenciação morfológica que lhe reflete a um tempo os seus vários estádios — das cabeceiras onde perduram as águas selvagens do antigo regime torrencial, ao curso médio que lhe caracteriza a situação presente, e ao trecho inferior, prefigurando-lhe a decrepitude, onde ele se espraia repousadamente e constrói, pela colmatage das vasas que acarreta com velocidade insensível, a própria planície aluvial em que descansa.

É a fase de madureza. O rio está na plenitude da vida, depois da molduragem complexa de todos os relevos. Atinge-a rematando um esforço pertinaz, que é por vezes toda a história geológica da região.

Não houve um ponto em todo o percurso de centenares ou de milhares de quilômetros que ele não atacasse, um grão de areia que não removesse, balanceando as escavações a montante com os aterros a jusante — construindo-se a si mesmo — obediente à tendência universal para as situações estáveis. Adquiriu, por fim, o seu perfil longitudinal de equilíbrio, e este, ainda abrupto nas vertentes onde a correnteza é máxima e o volume mínimo, vem continuamente amortecendo-se, em sucessivo decair de declive, até ao quase horizontalismo no nível de base, da foz, onde aqueles elementos se invertem, resultando o equilíbrio dinâmico do sistema da relação inversa entre as massas líquidas e as velocidades que se arrastam.

Como quer que seja, desde que alcança este período, todos os elementos do seu thalweg, projetados em plano vertical, desenham-se com a forma aproximada de um ramo de desmedida parábola, de concavidade volvida para as alturas.

Assim se traduz geometricamente um fato mecânico complexo. E bem que a tendência para aquela figura seja em geral perturbada ou extinta nas camadas de resistência variável, onde as rochas desvendadas originam o antagonismo das cachoeiras, é inegável que a curva parabólica se delineia nos terrenos homogêneos como sendo a forma definitiva da seção longitudinal de todos os rios no remate de suas vicissitudes evolutivas.

O Purus é um dos melhores exemplos.

Desenhando-se-lhe o perfil em toda a extensão itinerária de 3.210 quilômetros que vai da embocadura no Solimões aos últimos manadeiros do ribeirão Pucani, na serrania deprimida e sem nome que separa as maiores bacias hidrográficas da Terra, chega-se muito aproximadamente àquele ramo de parábola.

Pelo menos nenhuma outra curva o definirá melhor.

Demonstra-o este quadro onde os vários trechos se sucedem de modo a acompanhar-se em todo o seu percurso a queda regularíssima das águas:


Seções Distâncias itinerárias (Km) Diferenças de nível (metros) Declividade geral Declive quilométrico (metros)
Das nascentes ao Curiúja 117 189 1/619 1,60
Do Curiúja a Curanja 278 60 1/4.500 0,22
De Curanja à foz do Chandless 304 49 1/6.500 0,16
Do Chandless à foz do Iaco 300 39 1/7.700 0,13
Do Iaco ao Acre 237 27 1/8.700 0,115
Do Acre ao Panhini 233 20 1/11.000 0,085
Do Panhini ao Mucuim 740 58 1/12.900 0,077
Do Mucuim ao Solimões 990 15 1/66.700 0,015

Aí só há um dado vacilante: o que resulta da diferença de nível nos pontos extremos do último trecho. Deduzimo-lo adotando um mínimo de 18 metros para a altura da foz do Purus, sobre o nível do mar, quando ela é certamente maior e mais favorável, portanto, às nossas conclusões. Os demais elementos, devemo-los aos trabalhos de William Chandless e às nossas observações recentes.

Ora, ao mais rápido lance de vistas, e sem que se exija um desenho facílimo, verifica-se que o grande rio, atravessando um terreno homogêneo e mais ou menos impermeável, subordinado a um declive que, apesar de diminuto, é dominante na vasta planura, onde as chuvas se distribuem com regularidade incomparável — é dos que mais se adaptam às condições teóricas indicadas por Morris Davis; e no ultimar a sua evolução geológica retrata-se admiravelmente na parábola majestosa de que tratamos há pouco.

No estudar o seu regime geral vamos, portanto, com a firmeza de quem discute a equação de uma curva.

Assim, considerando o primeiro trecho, aquela declividade de 1,60m por quilômetro, tão diversa da que se lhe sucede, de 0,22m, diz-nos para logo, dispensando o exame local, que o verdadeiro Alto-Purus — demarcado oficialmente a partir da boca do Acre, e estendido por alguns geógrafos ainda mais para jusante — principia de fato muito além, a 3.019 quilômetros da foz, na confluência do Cujar e do Curiúja, os dois tributários em que ele se reparte numa dicotomia perfeita, perdendo o nome e esgalhando-se largamente fracionado pelos mais remotos pontos da sua vasta bacia de captação.

Por outro lado, o declive real de 1/619 mal se aproxima da conhecida relação 1/500 firmada como o limite mínimo das vertentes torrenciais. Conclui-se, então, de pronto, que o rio, até no seu último segmento, onde é sempre mais difícil e remorada a regularização dos leitos, está numa fase avançadíssima de desenvolvimento. É o caso excepcional de uma grande artéria, entre as maiores existentes, capaz de ser navegada nas mais extremas nascentes, durante as cheias que lhe encubram os numerosos degraus das corredeiras — porque em tal quadra, admitindo que as águas subam de três metros numa calha de dez, com aquele declive, que corresponde a 0,0016m por metro, o simples emprego da fórmula de D’Aubuisson nos diz que as correntes derivarão com a velocidade máxima de apenas 2,20m, facilmente balanceada por uma lancha veloz.

Ora, estas deduções resultantes de breve contemplação de um quadro tão expressivo que dispensa o diagrama correspondente, ressaltam, vivamente, às mais incuriosas vistas de observador escoteiro, que ali passe depois de varar a planura amazônica num itinerário de quinhentas léguas.

De fato, o que sobremaneira o impressionou é o espetáculo da terra profundamente trabalhada pelo indefinido e incomensurável esforço dos formadores do rio. Chega, depois de trilhar o canyon coleante do Pucani, ao sopé das últimas vertentes; defronte a clivosa escarpa de uma corda insignificante de cerros deprimidos; vinga-lhe em três minutos a altura relativa de sessenta metros escassos — e não acredita que esteja na fronteira hidrográfica mais extraordinária do globo, podendo ir de uma passada única do Vale do Amazonas ao Vale do Ucaiali...

A altura em que se vê não lhe basta a desapertar os horizontes, ou a atalaiar as distâncias. É inapreciável. Não há abrangê-la com a escala mais favorável dos mapas. E sem dúvida jamais compreenderia tão indeciso divortium aquarum a tão opulentas artérias, se ao buscar aqueles rincões, varando, ao arrepio das itaipavas, por dentro das calhas reprofundadas do Cujar, do Cavaljane e do Pucani, o observador se não habituasse a contemplar, longos dias, os mais enérgicos efeitos da dinâmica poderosa das águas que transmudaram a paragem outrora mais em relevo e dominante. Não lhe importa a inópia de conhecimentos paleontológicos ou a carência de fósseis norteadores. Está, evidentemente, sobre a ruinaria de uma sublevação quase extinta, cujo sinclinal ele pôde reconstruir, prolongando as linhas dos estratos que afloram nos sulcos onde se encaixam aqueles últimos tributários, denunciando todos na tranqüilidade relativa, quase remansados nos intervalos de suas corredeiras (restos de velhíssimas catadupas destruídas), a derradeira fase de uma luta em que o Purus, para alongar a sua seção de estabilidade, teve que derruir montanhas. Pelo menos a atividade erosiva e o volume de materiais arrebatados de todos aqueles pendores, foram incalculáveis, para que as linhas de drenagem se abatessem até ao substractum rochoso e declinassem, como vimos, aos graus apropriados aos cursos navegáveis.

Apesar disto, a transição para o trecho seguinte ainda é repentina. Passa-se da declividade quilométrica de 1,60m para a de 0,22m.

Mas é o único salto. Daí por diante, como o revela o quadro anterior, até ao último segmento extremado pela foz, onde para descer-se um metro se tem de caminhar 66,700, a atenuação dos declives prossegue com uma regularidade perfeita, incluindo o Purus entre as caudais de todo regularizadas, cujo “ciclo vital” progressivo vai cerrando-se.

Não aprofunda mais o leito. Os próprios afloramentos de grés (Parasandstein) aparecendo nas vazantes, dispersos entre Huitanaã e a embocadura do Acre, e dali para cima ainda mais raros até pouco além do Iaco, reforçam a afirmativa, bem que na aparência a invalidem. Restos de antigas corredeiras desmanteladas, surgem como testemunhos das erosões primitivas e não provocam, em geral, o mínimo desnivelamento. O pequeno povoado da Cachoeira, que se erige defrontando um trecho tranqüilo do rio, tem o mais impróprio dos nomes, expressivo apenas no recordar um acidente perdido em remoto passado geológico e do qual perduram apenas alguns blocos desordenadamente acumulados em minúsculos recifes, e breves “travessões”. Ali, como nos outros trechos, o mesmo quadro da terra estirando-se, complanada, pelos quadrantes, ou docemente ondulada denunciando a mais completa molduragem, associa-se aos demais caracteres no sugerir a derradeira fase do processo evolutivo do vale.

Um elemento apenas falta: a regularidade na sucessão das curvas de nível das vertentes imediatas às margens, que se fronteiam. Qualquer seção transversal do Purus representa as mais das vezes uma praia deprimida que mal se alteia vagarosamente até ao rebordo longínquo da planície pouco elevada, contraposta a uma barranca despenhada, como a da margem oposta à boca do Chandless, ou caindo às vezes a prumo, feito uma muralha, como na situação admirável do Catai.

É que à imutabilidade daquele perfil de equilíbrio se antepõe a variabilidade da sua planta, em escala capaz de justificar os que o incluem entre os rios “cujos leitos e margens não estão sequer delineados em seus perfis de estrutura definida e assente”.

Realmente, o Purus, um dos mais tortuosos cursos d’água que se registram, é também dos que mais variam de leito. Divaga, consoante o dizer dos modernos geógrafos. A própria velocidade diminuta, que adquiriu e vai decrescendo sempre até ao quase rebalsamento, nas cercanias da foz, aliada à inconsistência dos terrenos aluvianos, formados por ele mesmo com os materiais conduzidos das nascentes, determina-lhe este caráter volúvel. Às suas águas, derivando em correntezas fracas, falta a quantidade de movimento necessária às direções intorcíveis. O mínimo obstáculo desloca-as. Um tronco de samaúma que tombe de uma das margens, abarreirando-se ligeiramente, desvia o empuxo da massa líqüida contra a outra, onde de pronto se exercita, menos em virtude da força viva da corrente que da incoerência das terras, intensíssima erosão de efeitos precipitados.

A indecisa arqueadura, que logo se forma, circularmente, se acentua, e, à medida que aumenta, vai tornando mais violentos os ataques da componente centrífuga da correnteza que lhe solapa a concavidade crescente, fazendo com que em poucos anos todo o rio se afaste, lateralmente, do primitivo rumo. Mas como este se traçou adscrito aos pontos determinantes de um perfil de equilíbrio inviolável, aquele desvio nunca é uma bifurcação, ou definitiva mudança. O rio, depois de rasgar o amplo circo de erosão, procura volver ao antigo canal, como quem contorneou apenas um obstáculo encontrado em caminho.

O círculo por onde ele se alonga tende a fechar-se. De sorte que toda a área de terrenos abrangidos se transmuda em verdadeira península, ligada por um istmo tão delgado, às vezes, que o caminhante o atravessa em minutos, enquanto gasta um dia inteiro de viagem, embarcado, para perlongar o contorno da terra quase insulada. Por fim esta se destaca, ilhando-se de todo. No sobrevir de uma enchente o Purus despedaça a frágil barreira do istmo; e retoma, de golpe, o primitivo curso, deixando à margem, a relembrar o desvio por onde divagou, um lago anular, não raro amplíssimo. Prossegue. Reproduz adiante outros meandros caprichosos, completados sempre pela criação dos mesmos lagos, ou sacados. E assim vai — perpetuamente oscilante aos lados de seu eixo invariável — num ritmo perfeito, refletindo o jogar de leis mecânicas capazes de se sintetizarem numa fórmula, que seria a tradução analítica de curioso movimento pendular sobre um plano de nível.

Desta maneira, ali se resolve naturalmente um dos mais sérios problemas de hidráulica fluvial. De fato, aqueles lagos são verdadeiros diques, funcionando com um duplo efeito: de um lado impedem as inundações devastadoras, absorvendo os excessos das cheias transbordantes; de outro lado, regulam o regime das águas, durante as grandes estiagens, em que se abrem por si mesmos, automaticamente, estourando, para usar uma expressão local, e restituindo ao rio empobrecido da vazante parte das massas líqüidas que economizaram.

Não se calcula o valor destes trabalhos colossais da natureza.

Revela-no-los bem um confronto expressivo. Os hidráulicos franceses que averbaram em 1856, como pormenor inverossímil, uma subida de 10,90m das águas do Garonne, originando uma das inundações mais funestas que têm ocorrido na Europa, certo não compreenderiam a própria existência do vasto território amazônico convizinho ao Purus (que vale cerca de cinqüenta Garonnes cheios) se soubessem que ele se alteia 15 metros na foz, onde tem uma milha de largo, e que dali a montante as águas tufam num crescendo espantoso até 23 metros sobre as estiagens, na confluência do Acre.

No entanto estas enchentes são inócuas.

A massa líqüida, inflada logo às primeiras chuvas, sobe, galgando velozmente as barrancas, e em poucos dias vai bater nos esteios dos barracões eretos nos firmes mais altos do terreno... e todo este dilúvio em marcha não acachoa, não tumultua, não se arremessa em correntezas vertiginosas, não enleia as embarcações torcendo-as nas espirais vibrantes dos remoinhos e não devasta a terra. Difunde-se; extingue-se silenciosamente; perde-se inofensivo naqueles milhares de válvulas de segurança; e espraiando-se, raso, pelo chão das matas, ou espalmando-se, desafogadamente, em desmarcadas superfícies onde repontam, salteadas, as últimas ramas floridas dos igapós afogados, vai, ao contrário, regenerando aquela mesma terra, e reconstruindo-a porque a torna de ano em ano mais elevada com a colmatage perfeita de toda a vasa que acarreta.

Assim, em toda aquela planura, o notável afluente amazônico, serpenteando nas inumeráveis sinuosas que lhe tornam as distâncias itinerárias duplas das geográficas, inclui-se entre os mais interessantes “rios trabalhadores”, construindo os diques submersíveis que o aliviam nas enchentes — e lhe repontam, intermitentemente às duas bandas, ora próximos, ora afastados, salpintando todas as várzeas ribeirinhas, e avultando maiores e mais numerosos à medida que se desce, e se amortecem os declives, até a larga baixada centralizada em Cantuama onde as grandes águas tranqüilas derivam majestosamente, equilibradas, sulcando de meio a meio a vastidão de nível de um mediterrâneo esparso.

Mas esta formação de lagos ou reservatórios naturais, cuja função benéfica vimos de relance, acarreta inconvenientes de tal porte que tornam, por vezes, em alguns pontos, quase impenetrável uma artéria fluvial que pelos elementos privilegiados de seu perfil concorre com as mais acessíveis à navegação regular.

Realmente nesse afanoso derruir de barrancas, para torcer-se em seus incontáveis meandros, o Purus entope-se com as raízes e troncos das árvores que o marginam.

Às vezes é um lanço unido, de quilômetros, de “barreira”, que lhe cai de uma vez e de súbito em cima, atirando-lhe, desarraigada, sobre o leito, uma floresta inteira.

O fato é vulgaríssimo. Conhecem-no todos os que por ali andam. Não raro o viajante, à noite, desperta sacudido por uma vibração de terremoto, e aturde-se apavorado ouvindo logo após o fragor indescritível de miríades de frondes, de troncos, de galhos, entrebatendo-se, rangendo, estalando e caindo todos a um tempo, num baque surdo e prolongado, lembrando o assalto fulminante de um cataclismo e um desabamento da terra.

São, de fato, “as terras caídas”, das quais resultam sempre duas sortes de obstáculos: de um lado o inextricável acervo de galhadas e troncos, que se entrecruzam à superfície d’água, ou irrompem em pontas ameaçadoras, do fundo; e de outro as massas argilosas, ou argilo-arenosas, que a corrente pouco veloz não dissolve, permitindo-lhes acumularem-se nas minúsculas ilhotas dos “torrões”, ou, mais prejudiciais, nos rasos bancos compactos dos “salões”, impropriando a passagem aos mais diminutos calados.

Não precisamos insistir neste fato.

A sua gravidade é intuitiva. E considerando-se que ele se reproduz em toda a extensão de 480 quilômetros, que vai da embocadura Do Iaco à do Curiúja, onde se acumulam cada vez mais aqueles entraves, indefinidamente crescentes, chega-se a concluir que o Purus, depois de haver conseguido um dos mais regulares perfis de toda a hidrografia e de aparelhar-se com os melhores elementos predispostos a uma rara fixidez de regime, erigindo-se modelo admirável entre as caudais mais bem talhadas à grande navegação — está, agora, a pouco e pouco perdendo a maior parte dos seus requisitos superiores, com o progredir de um atravancamento em larga escala, que o tornará mais tarde inteiramente impenetrável.

Dizemo-lo baseando-nos em penosa experiência culminada por um naufrágio. Sobretudo além da embocadura do Chandless, multiplicam-se tanto estes empecilhos de todo estranhos à “tectônica” especial do rio, que em longos “estirões” com a profundidade média de cinco a seis pés, nas vazantes, onde passariam carregadas as mais poderosas lanchas, mal pode deslizar uma montaria ligeira. Escusamo-nos de exemplificar alongando estas considerações ligeiras. Notemos apenas que a partir do tributário precitado até à bifurcação Cujar-Curiúja, o Purus em vários lugares parece correr por cima de uma antiga derrubada. Vai-se como entre os galhos estonados e revoltos de uma floresta morta. E se observarmos que, além dos empeços em si mesmas encerrados, estas tranqueiras, rebalsando as águas que se filtram entre os ramos unidos, facilitam a formação de toda a sorte de baixios, compreender-se-á em toda a sua latitude o progredimento contínuo dessa obstrução prejudicialíssima.

Porque os homens que ali mourejam — o caucheiro peruano com as suas tanganas rijas, nas montarias velozes, o nosso seringueiro, com os varejões que lhe impulsionam as ubás, ou o regatão de todas as pátrias que por ali mercadeja nas ronceiras alvarengas arrastadas à sirga — nunca intervêm para melhorar a sua única e magnífica estrada; passam e repassam nas paragens perigosas; esbarram mil vezes a canoa num tronco caído há dez anos junto à beira de um canal; insinuam-se mil vezes com as maiores dificuldades numa ramagem revolta barrando-lhes de lado a lado o caminho, encalham e arrastam penosamente as canoas sobre os mesmos “salões” de argila endurecida; vezes sem conta arriscam-se ao naufrágio, precipitando, ao som das águas, as ubás contra as pontas duríssimas dos troncos que se enristam invisíveis, submersos de um palmo — mas não despendem o mínimo esforço e não despedem um golpe único de facão ou de machado num só daqueles paus, para desafogar a travessia.

As lanchas, e até os vapores, que ali vão aparecendo mais a miúdo, à medida que avultam as safras dos cento e vinte opulentos seringais que já se abriram acima da confluência do Iaco, viajam, invariavelmente, nas quadras favoráveis das cheias, quando aqueles entraves se afogam em alguns metros de fundo.

Sobem, velozes, o rio; descarregam, precipitadamente, em vários pontos as mercadorias consignadas; carregam-se de borracha; e tornam logo, precípites, águas abaixo, fugindo. Apesar disto, algumas não se forram a repentinas descidas de nível, prendendo-as. E lá se ficam, longos meses — esperando a outra enchente, ou o inesperado de um “repiquete” propício, invernando paradoxalmente sob as soalheiras caniculares — nas mais curiosas situações: ora em pleno rio, agarradas pelos centenares de braços das árvores secas, que as imobilizam; ora a meio da barranca, onde as surpreendeu a vazante, grosseiramente especadas, incumbentes, com as proas afocinhando, inclinadas, em riscos permanentes de queda; ora no alto de uma barreira, como autênticos navios-fantasmas, aparecendo, de improviso e surpreendedoramente, em plena entrada da mata majestosa.

O contraste desta navegação com as admiráveis condições técnicas imanentes ao rio é flagrante. O Purus — e como ele todos os tributários meridionais do Amazonas, à parte o Madeira — está inteiramente abandonado.

Entretanto, o simples enunciado destes inconvenientes, evidentemente alheios às suas admiráveis condições estruturais, delata que a remoção deles, embora demorada, não demanda trabalhos excepcionais de engenharia e excepcionais dispêndios.

O que resta fazer, ao homem, é rudimentar e simples.

Os grandes, os sérios problemas de hidráulica fluvial que ali houve, resolveu-os o próprio rio agindo no jogo harmonioso das forças naturais que o modelaram.

E eles representam um trabalho incalculável. O Purus é uma das maiores dádivas entre tantas com que nos esmaga uma natureza escandalosamente perdulária.

Vejamo-lo, de relance.

Toda a hidráulica fluvial parece ter nascido entre os leitos do Garonne e do Loire, tais e tantos os monumentos que ali levantou a engenharia francesa. Nunca o homem arremeteu com tamanha pertinácia e brilho com a brutalidade dos elementos. Os romanos transfigurando a Argélia e os holandeses construindo a Holanda, emparelham-se bem com os abnegados profissionais que durante um século, impassíveis ante sucessivos reveses, se devotaram à empresa exaustiva de paralisar torrentes, de atenuar inundações e de encadear avalanchas, na dupla tentativa de facilitar a navegação e de proteger os territórios ribeirinhos. E todo esse magnífico esforço em que se imortalizaram Deschamps, Dieulafoy e Belgrand resultou em grande parte inútil. Inútil ou contraproducente. Os primores da engenharia estragaram o Loire.

Os diques submersíveis ou insubmersíveis destinados a salvarem as povoações, os canais de socorro que se lhes anexavam, as margens artificiais ladeando em dezenas de quilômetros o leito menor das caudais, os enrocamentos antepostos às erosões, as barragens antepostas às correntezas— tinham em geral a duração efêmera dos seis meses da estiagem, tal a inconstância irreparável daquelas artérias.

Por fim engenharam-se estupendos reservatórios alcandorados nos Pireneus, escalonando-se por todos os pendores, para armazenar as inundações. E armazenavam catástrofes — rompendo-se-lhes os muros, de onde saltavam as ondas despenhadas varrendo povoados inteiros...

Mas ainda quando estas rupturas dos reservatórios compensadores não formassem os episódios mais dramáticos da história da engenharia, e eles pudessem erigir-se estáveis e sem riscos, nós, quaisquer que fossem os nossos esforços e os nossos dispêndios, jamais os construiríamos como no-los construiu o Purus.

Considere-se, para isto, este exemplo. Duponchel, para dar ao Neste — um pequeno rio com a despesa média de 25 metros cúbicos — um modelo constante, que lhe amortecesse as inundações, calculou um reservatório de 300.000.000.000 de litros e recuou ante o algarismo colossal.

Ora, o Neste é três vezes menor do que o Iaco, que, entretanto, não se inclui entre os maiores afluentes do Purus.

Diante destes dados formidáveis põe-se de manifesto que a construção de reservatórios compensadores no grande rio seria o mesmo que fazer um mar; e conclui-se que os existentes, numerosíssimos, às suas margens, representam um capital inestimável e acima dos mais ousados orçamentos.

Precisamos ao menos conservá-lo. Aproveitemos uma lição velha de um século. O Mississipi, que no seu curso inferior retrata o traçado do Purus com a exação de um decalque, era, pelas mesmas causas, ainda mais inçado de empecilhos, tornando-o quase impenetrável e em muitos lugares de todo intransponível. Alguns dos seus tributários não estavam apenas trancados: desapareciam, literalmente, sob os abatises.

No entanto o grande rio, hoje transfigurado, desenha-se como um dos traços mais vivos da pertinácia norte-americana.

Lá está, porém, no seu vale, em um de seus afluentes, o rio Vermelho, um caso desalentador. É um rio perdido. O yankee descobriu-o tarde demais. A desmedida tranqueira, the great raft, exatamente formada como as que estão formando-se no Purus, estira o labirinto de seus madeiros e das suas frondes mortas por 630 quilômetros — e lá está, indestrutível, depois de desafiar durante vinte e dois anos os maiores esforços para uma desobstrução impossível.

Estabelecida a proporção entre aquele rio minúsculo e o Purus, entre nós e os norte-americanos, aquilatam-se as dificuldades que nos aguardarão, se progredirem os obstáculos apontados, e cuja remoção atual, completando-se com a defesa, embora rudimentar, das margens mais ameaçadas pelas erosões, é ainda de relativa facilidade. Ao mesmo passo se atenuarão consideravelmente as “divagações” precitadas, que constituem verdadeira anomalia num rio aparelhado de um perfil de estabilidade demonstrável até geometricamente, como vimos.

De qualquer modo urge iniciar-se desde já modestíssimo, mas ininterrupto, passando de governo a governo, numa tentativa persistente e inquebrantável, que seja uma espécie de compromisso de honra com o futuro, um serviço organizado de melhoramentos, pequeno embora em começo, mas crescente com os nossos recursos — que nos salve o majestoso rio. Von den Stein, com a agudeza irrivalizável de seu belo espírito, comparou, algures, pinturescamente, o Xingu a um "enteado" da nossa geografia.

Estiremos o paralelo.

O Purus é um enjeitado.

Precisamos incorporá-lo ao nosso progresso, do qual ele será, ao cabo, um dos maiores fatores, porque é pelo seu leito desmedido em fora que se traça, nestes dias, uma das mais arrojadas linhas da nossa expansão histórica.