O desenleio maravilhoso e misterioso deste acontecimento assustou o pai de D. Madalena. A superstição foi grande arma em favor de Rui de Leão, que alguns dias depois ousou apresentar-se em casa da moça e pedi-la em casamento.

A leitora aplaude já a recusa de Madalena. Madalena aceitou.

Previamente perdoado do crime cometido, Rui de Leão casou com Madalena, e confiou que ao menos teria durante alguns anos uma vida feliz; até que de novo o tomasse o tédio da vida.

Entretanto, D. Martim descontente com o desenlace do caso, explicou a seu modo a ressurreição do rival.

— Foi naturalmente, dizia ele, a um oficial foi naturalmente acordo entre o réu e o carrasco. Deu-lhe este um laço fraco, e o homem pôde ressuscitar...

— Mas se eu vi o contrário, respondia o oficial.

— Viu mal...

Jurou D. Martim vingar-se de Rui. Como?

Cogitou um meio seguro; estreitou relações com o marido de Madalena. Era para ele grandíssima dor e profundíssimo despeito ver o rival ao lado daquela a quem ele amava apesar de tudo. Mas o ciúme suporta tudo.

Quando julgou que as relações estivessem firmadas entre ambos e bania do ânimo de Rui qualquer suspeita contra ele, D. Martim tratou de comprar um dos criados do rival e a poder de patacões conseguiu que o criado se prestasse ao crime.

Costumava Rui tomar uma xícara de chá uma hora depois do jantar. Uma tarde, achando-se todos três na sala, achou-se Rui afrontado; tinha comido muito e a digestão era laboriosa.

— Que sentes mais? perguntou Madalena.

— Nada mais. Eu já sei qual é o remédio; mande vir o chá mais cedo.

Deu ordem, e o criado trouxe a xícara de chá. D. Martim olhou para o criado, e este fez-lhe sinal de que o veneno estava dentro.

Quem olhasse então para D. Martim veria a expressão de triunfo que lhe transluzia no olho.

— Enfim, disse ele consigo.

Rui tomou tranqüilamente o chá, conversou pouco, estendeu-se na cadeira de couro e adormeceu.

D. Martim ficou a sós com Madalena.

— Madalena! disse ele.

— Que ousadia é essa? disse a moça.

— Ousadia, não. Ouça-me, eu ainda a amo...

— D. Martim não me parece de cavalheiro o seu proceder.

— Por quê? perguntou D. Martim com um sorriso infernal.

— Não vê quem ali está?

— Ali?

— Sim.

— Ali está um cadáver.

— Um cadáver? perguntou a moça ficando pálida.

— Quase. Daqui a dez minutos é um cadáver.

— Explique-se, D. Martim, por quem é!

— Ah! pensa que eu não teria a minha vingança?

D. Martim estava fora de si; ajoelhou-se aos pés de Madalena; esta fugiu para o interior.

No entanto, acordou Rui, bocejou, levantou-se e deu com os olhos em D. Martim, que estava no fundo da sala mais branco que uma toalha.

— Que tem você? D. Martim...

— Eu nada... disse D. Martim sem tirar os olhos do rival.

— Pois, senhor, continuou este, o chá precipitou a digestão, sinto-me melhor. Onde está Madalena?

A moça ouvira a voz do marido e correu à sala.

D. Martim esperava a todo momento ver cair fulminado o nosso fidalgo e já se arrependera das palavras que dissera nesse sentido a Madalena.

Esta perguntou ao marido como se achava; e ele respondeu que muito melhor.

— Proponho que joguemos alguma coisa para passar a noite que promete ser fria. O primo fica,... não?

— Eu... não... mas...

— Fica de certo.

Jogaram até tarde; tomaram chá; e Rui não morreu como o outro esperava.

Foi naturalmente o patife do criado, pensou D. Martim.

Mas o criado estava igualmente espantado. Olhava para D. Martim, e não sabia explicar aquele mistério.

Quando D. Martim de lá saiu, foi acompanhado pelo cúmplice que lhe jurou ter posto no chá a dose de veneno convencionada.

— Mas então que foi aquilo?

— Eu sei lá, senhor... Creio que um tiro...

— E prometes ajudar-me na empresa?...

— Prometo.

— Bem; iremos ao tiro.

Prepararam emboscada ao invencível Rui de Leão; deu-se o caso na Rua do Piolho, em noite de tormenta, estando a rua mais deserta que um Saara. O criado armou-se com o arcabuz do crime; e desfechou o tiro na cara de Rui. A vítima soltou um espirro e continuou tranqüilamente a viagem.

O criado desmaiou.

Rui compreendia que D. Martim lhe preparava golpes sobre golpes; mas confiado no elixir do pajé, mostrava-se indiferente às emboscadas e ao veneno do rival.

A única questão seria a infidelidade da mulher.

Mas esta era um modelo de amor e constância. Amava-o com ardor apesar de ir já longe a lua de mel.

Por isso mesmo durou pouco a felicidade.

Madalena faleceu de uma pneumonia aguda.

— Quê! exclamou o pobre imortal; pois eu hei de ver morrer todos aqueles a quem amo e hei de arrastar este castigo de vida?

Enterrou-se a mulher de Rui com a pompa digna da riqueza do marido. Aborrecido por estar no lugar onde lhe morrera a esposa, Rui determinou partir para a Europa e assim o fez em 1825 depois de declarar a sua intenção de ficar brasileiro.

D. Martim foi para Angola, onde morreu de desgostos.

Correram os anos.

Em 1835 aportou outra vez ao Rio de Janeiro o invencível Rui de Leão, disposto a não viajar mais e a esperar aqui o dia do juízo final. Achou o espírito público agitado com a política. Não havia loja em que se não conversava da coisa pública; e os nomes tais e tais eram citados como modelos do estadista, conforme pertenciam a esta ou aquela cor política.

É difícil estar entre políticos muito tempo sem adquirir a febre que os devora. Além disso, Rui de Leão não tinha ensaiado esse gênero de distração. Nem a ciência, nem o amor, nem o jogo, lhe apresentavam pasto suficiente ao seu espírito sedento de ocupação.

Para se calcular bem a situação do nosso herói basta ter em lembrança o tédio de um dia em que não temos nada que fazer. Multipliquemos esse dia pela eternidade e aí teremos a tortura moral deste verídico sujeito escolhido pelo destino para ser o exemplo único de uma aborrecida imortalidade.

A política correspondeu aos desejos de Rui de Leão.

Desde que entrou em comunicação com os chefes de um dos partidos, viu logo que aquilo era turbilhão para uns trinta ou quarenta anos.

— Ao menos, disse ele consigo, passarei este tempo mais satisfeito até que descubra outro meio que me substitua a política.

Fundou logo uma gazeta denominada A Alvorada cujo programa era vago como a hora que o título fazia lembrar. Um dos períodos mais práticos era este:

Reunir todos os elementos de prosperidade em favor da liberdade, consubstanciar a ordem nas aspirações do país, transformar o torpor em atividade, eis o programa da imprensa independente e é o meu.

Os leitores gostaram deste programa; mas o jornal adverso, que se denominara O Grito da Nação atacou os princípios da Alvorada com esta simples pergunta:

Onde é que o colega viu que a liberdade prática, única, resoluta, firme, invencível pode, abraçando elementos contrários, ostentar princípios, idéias, melhoramentos, que, simbolizando a honra de uma época, destruam a poeira de um passado recente?

Tal foi o começo de uma polêmica estrondosa que ainda hoje existiria se a morte igual para os homens e as gazetas não tivesse destruído o Grito e a Alvorada, dentro de alguns meses.

Os talentos de jornalista de nosso Rui de Leão foram apreciados por amigos e adversários: efetivamente, Rui tinha a capacidade especial que se exige na imprensa política. O Grito da Nação andou atrapalhado durante a existência da Alvorada que dias pouco lhe sobreviveu.

O partido de Rui esperou a primeira ocasião para apresentá-lo candidato por uma das províncias, o que aconteceu pouco tempo antes da morte da gazeta. A candidatura foi aceita pelos caudilhos da localidade. A Alvorada mencionou o fato como a aurora de uma grande vida política, pois o digno Rui de Leão era, nem mais nem menos, um homem de Plutarco.

— Quem é este Rui de Leão? perguntaram uns.

— Não sei, respondiam outros, mas parece que é um grande homem.

— Parece que sim.

Onde quer que se falasse de Rui, manifestavam-se logo grandes esperanças em favor dele.

Se ele passava, era apontado como um grande político, um Pitt, um Pombal.

De maneira que, antes de entrar no parlamento, já o nosso Rui de Leão tinha a reputação feita. Se morresse logo, morria em cheiro de santidade.

Mas como morreria o imortal? Foi eleito.

Os leitores me dispensarão de dizer o que houve quando a pessoa deste ilustre doutor penetrou no recinto da Cadeia Velha. Cumprimentado e abraçado por amigos, olhado com desconfiança por adversários, Rui de Leão era o homem da situação, a esfinge que daria a palavra do futuro.

Quando algum deputado orava não deixava de aludir delicadamente ao redator da Alvorada, como um dos homens mais eminentes do país e da câmara.

Numerosos apoiados acolhiam estas palavras de justiça.

Durante uns trinta dias esteve calado o novo representante da nação, com grave desgosto dos seus amigos, que atribuíam grande poder de palavra a um homem tão insigne no uso da pena.

Os adversários que tinham a mesma opinião estimaram aquele silêncio e só desejavam que continuasse do mesmo modo.

Um dia, porém, no meio do grande barulho da assembléia, pediu a palavra o nosso Rui de Leão. Fez-se imediatamente profundo silêncio; os deputados correram a fazer grupo à volta do orador; o povo das galerias debruçou-se mais para não perder nada, e o próprio presidente, pondo a mão em forma de concha na orelha, preparou-se para ouvir a estréia parlamentar do redator da Alvorada.

Modesto e moderado em suas aspirações, Rui de Leão começou assim o seu discurso: Sr. presidente. Das pessoas que o país mandou representá-lo, eu sou, sem dúvida, o mais humilde e o menos competente (Não apoiados). Vejo, Sr. presidente, que me rodeiam as capacidades do país não só entre os meus amigos como entre os meus adversários (Muito bem!) porque eu, senhores, quando contemplo os talentos, apreço as opiniões (Sensação). Nada valho, senhores...

Muitas vozes: Não apoiado!

O Sr. X. — Vale muito...

O orador: — Nada valho, mas sinto em mim que posso ajudar o edifício da grandeza nacional, não como o arquiteto que traça o plano, mas como o servente que carrega a pedra (Aplausos).

Para construir esse edifício, senhores, que tem feito o governo? Onde estão os seus planos? Que materiais possui? Com que operários conta? Não aparece nada disto. Agarrados às pastas, os nobres ministros só apreciam o poder pelos prazeres que ele dá, prazeres frívolos e indignos de cidadãos de um grande país, em vez de se consagrarem todos, e a todas as horas, e com todas as forças, ao desenvolvimento da herança que receberam, senhores, e que deverão passar aos nossos filhos!

Aqui houve uma tal explosão de protestos e aplausos, que o orador foi obrigado a calar-se algum tempo, e o presidente a agitar a campainha, verdadeira inutilidade no parlamento, porque, quando todos gritam, a campainha tem pouca força moral para acalmar a tempestade.

Serenada aquela, depois de trocados alguns ditos mais ou menos enérgicos, continuou o nosso orador, e daí em diante não houve cena igual, porque a eloqüência de Rui de Leão arrebatava amigos e adversários, e todos estavam pendentes dos lábios do novo Demóstenes.

Não resisto à tentação de transcrever das memórias secretas (porque os anais não trazem os discursos de Rui), a peroração do famoso discurso.

Ei-la:

Tenho vivido muito, senhores, e conheço profundamente os homens e as coisas. A ciência dos Estados não é uma vã palavra; estudei-as nas obras dos homens públicos e no estudo pessoal dos acontecimentos. Aquele grande e imortal Catão é para mim o tipo da probidade política, o modelo dos partidários, a consolação das causas vencidas, a lição dos povos, o espantalho dos déspotas, o espelho dos cidadãos (bravo!), a glória da humanidade, o emblema do passado que desmoronou, a esperança do futuro que se levanta! (Aplausos.) Dir-me-eis, talvez, senhores, que eu devia imitar aquele grande homem recorrendo à morte? (Não! não!) Não o faço, não, não poderia fazê-lo! De mais a causa da verdade estará assim perdida? Eu vejo sentados nas cadeiras ministeriais homens que traem os seus deveres e são capazes de vender a consciência por um prato de lentilhas (Sussurros!); mas, senhores, não nos iludamos; por ser Catão, é preciso resistir ao despotismo de César, e onde está César? Alguém conhece entre os seus adversários um César? (Ouçam! ouçam!) Descansemos, pois; não recorramos a um exemplo que seria funesto, porque a causa da verdade está salva, desde que houver entre nós e a oposição, a força e a união necessárias para vencer estes carregadores de pastas! (Aplausos). Senhores, vou concluir. Os hebreus atravessaram o deserto guiados por uma coluna de fogo. Somos os hebreus da política; a coluna de fogo é a verdade; ali nas cadeiras ministeriais está a terra de promissão. Emboquemos as trombetas da franqueza, avancemos com as tropas da vontade, empunhemos a espada da decisão, e aqueles cairão; aqueles homens serão cadáveres políticos porque, senhores, pouco dista de um moribundo a um cadáver.

Esta monumental peroração, que os professores deviam dar aos seus alunos de retórica, causou imensa impressão na Câmara.

Os ministros quiseram responder; mas era impossível. Só havia atenção para o vulto impudente do nosso Rui que, sendo cumprimentado por grande número de senhores deputados, recebeu no dia seguinte convite para um jantar que lhe deu a Câmara, sem distinção de partidos.

— Que discurso! dizia um.

— Um monumento!

— É Mirabeau!

— É Cícero!

— Nunca ouvimos tal...

— É o Demóstenes moderno.

— Está fundada a eloqüência brasileira.

Tais eram as conversações do povo e da Câmara acerca do discurso de Rui de Leão.

Ainda no jantar que lhe deram, o ilustre orador teve ocasião de assombrar a todos com um soberbíssimo speech, no qual, aludindo à circunstância de estarem ali amigos e adversários, proferiu esta frase tão imortal como o autor:

“Estou aqui como os mortos no cemitério: a terra e o jantar nivelam as condições e as opiniões: o estômago é eclético.”

Seria longo enumerar os prodígios de eloqüência do nosso Rui e dizer que serviços importantes prestou ele à causa do partido. Bastará mencionar que dentro de pouco foi ele constituído chefe do partido e aclamado o primeiro homem do parlamento.

Mas cedo se aborreceu da posição e da vida política.

Tendo concluído a legislatura, o nosso homem declarou que se retirava à vida privada.

Gastaram-se muitas ferraduras e pedras das ruas em visitas à casa de Rui, a fim de ver se alcançaria que ele desistisse do intento.

Impossível.

Rui persistiu na intenção de deixar a vida pública.

— Mas nós!...

— Não desisto do meu plano.

— Por quem é...

— Impossível.

Retirou-se para o norte, e lá se escondeu arrastando uma vida que lhe era odiosa.

Um belo dia cai a notícia de que rompera a guerra com o ditador López.

Rui alistou-se como capitão de voluntários e partiu para o sul. Fez proezas incríveis, colocou-se à frente das balas, queria a morte a todo custo.

Impossível.

A morte respeitava-o.

Um dia, saindo fora do acampamento, encontrou um oficial paraguaio.

— Senhor, disse ele, sou inimigo: mate-me.

O paraguaio disparou-lhe um tiro, que lhe não fez mal nenhum. Acudiu a companhia de Rui e o trouxe para o acampamento.

Desesperado, voltou o homem à corte e aqui ficou, até que se deu o acontecimento que vou resumir e com o qual se conclui a história.

Travou Rui conhecimento com um médico homeopata, Álvares Melo; era excelente conhecedor da ciência e Rui gostava de conversar sobre medicina.

Um dia conversando em casa de Bernardes disse Rui ao Doutor Álvares:

— Nunca pude compreender o princípio homeopático.

— Por quê?

— Acho ele contraditório.

— Não é, disse Álvares; os maiores luminares da alopatia escreveram máximas que apóiam o princípio homeopático.

— Acho isso um sofisma.

— Não é, e vai ver.

Álvares entrou a explicar detidamente o sistema homeopático ao amigo; acumulou exemplos; raciocinou com calma e ciência, pois era homem que sabia o que dizia.

Rui ficou um tanto abalado.

Foi para casa e estudou o sistema homeopático com o afinco que lhe era peculiar, sempre que queria saber profundamente uma coisa.

Dentro de pouco estava convencido.

Mas então que disse ele?

— Tupã! és tudo; mas erraste. Fizeste-me imortal; mas deste ao mundo a homeopatia. Venço-te com as tuas armas. Similia similibus curantur; estás vencido.

Bebeu o resto do elixir do pajé. No dia seguinte morreu.

Assim acabou este grande homem, após quase três séculos de existência, tendo colhido louros na guerra, na ciência e no parlamento; feliz no jogo e nos amores; mimoso da fortuna; homem, enfim, que provou praticamente que a morte, longe de ser um mal, é um corretivo necessário aos aborrecimentos da vida.

Imitemo-lo nas façanhas e no amor ao estudo; não no desejo de ser imortal; e convencemo-nos de que o melhor elixir de imortalidade não vale os sete palmos de terra de Caju.


FIM