A César Muniz

O SABIÁ RUFIAVA AS ASAS pardas e amplas, sempre que fazia explosir, como uma girândola no ar inefável e translúcido, a sua escala cromática, de gorjeios claros e espontâneos, pela saleta de uns tons violáceos, com filetes e cinzeladuras doiradas.

Quando o sol, gloriosamente tranqüilo, numa fartura de luz benéfica, numa refrangibilidade prismática, atirava os venábulos cintilantes pela janela da luxuosa saleta, fazia bem ouvir-se, consorciados à coloração vermelha, rubra, os artísticos concertos do incomparável maestro das sinfonias selvagens, do empório largo da natureza criadora.

Era o deslumbramento da harmonia e da luz.

E quanto mais o sol fulgia, coruscando do alto, em rutilante cascata, mais o sabiá cantava, cantava, cantava sempre.

Parecia que nos raios do grande Filósofo da evolução natural, vinha presa, fundida, corporificada toda aquela música sonorosa e adoravelmente casta que lhe saía do laringe metálico.

Sentia-se como que o irromper imponentíssimo de heróis, de espíritos saudáveis, em marchas triunfais, em pompas, pela curvidão marmórea do Azul, ao escutar-se o primoroso tenor das selvas.

Como cantava bem; como os trinados cheios, como os vocábulos musicalizados se derramavam todos, com orgulho, inflados de brio, recortados de uma bravura nervosa, sobre os objetos silenciosos — os ricos móveis facetados de madrepérola, os divãs de custo superior, os contadores róseos, as chaises-longues, o piano, sobre o qual dormiam algumas rêveries de Schubert, as cômodas poltronas austeras, os cristais finíssimos, as estatuetas representando amores pagãos, os reposteiros suntuosos, cor marron, as múltiplas fanfreluches chinesas, as esquisitas ânforas gregas—tudo na imobilidade da treva.

Um dia, deixaram a porta da gaiola aberta e o sabiá, lembrando-se que tinha talvez um lar mais livre na amplitude livre da floresta, uni ninho mais amigo, mais carinhoso, na doçura consoladora da paina e do musgo, bateu, abriu as asas de gênio inspirado, num último acorde de músico e vibrante e... fugiu, rasgando a transparência das esferas alegres e infinitas.

Mas um caçador ingrato que rodeava aquelas paragens, vendo o esvoaçar vitorioso do pássaro cantarolador, disparou uni tiro valente e o sabiá caiu...

Nos seus olhos havia ainda os derradeiros lampejos do tropicalismo da raça.

E o sangue a rebentar-lhe da ferida aberta, como que parecia também salmodiar a nênia sombria da ingratidão dos homens pelas Aves da Luz.