Seriam nove horas do dia.
Um sol ardente de março esbate-se nas venezianas que vestem as sacadas de uma sala, nas Laranjeiras.
A luz coada pelas verdes empanadas debuxa com a suavidade do nimbo o gracioso busto de Aurélia sobre o aveludado escarlate do papel que forra o gabinete.
Reclinada na conversadeira com os olhos a vagar pelo crepúsculo do aposento, a moça parece imersa em intensa cogitação. O recolho apaga-lhe no semblante, como no porte, a reverberação mordaz que de ordinário ela desfere de si, como a chama sulfúrea de um relâmpago.
Mas a serenidade que se derrama por toda a sua pessoa, se de alguma sorte desmaia a cintilação de sua beleza, a embebe de um fluido inefável de meiguice e carinho, que a torna irresistível.
Seus olhos já não têm aqueles fulvos lampejos, que despedem nos salões, e que, a igual do mormaço crestam. Nos lábios, em vez do cáustico sorriso, borbulha agora a flor d’alma a rever os íntimos enlevos.
Sombreia o formoso semblante uma tinta de melancolia que não lhe é habitual desde certo tempo, e que não obstante se diria o matiz mais próprio das feições delicadas. Há mulheres assim, a quem um perfume de tristeza idealiza. As mais violentas paixões são inspiradas por esses anjos de exílio.
Aurélia concentra-se de todo dentro de si; ninguém ao ver essa gentil menina, na aparência tão calma e tranqüila, acreditaria que nesse momento ela agita e resolve o problema de sua existência; e prepara-se para sacrificar irremediavelmente todo o seu futuro.
Alguém que entrava no gabinete veio arrancar a formosa pensativa à sua longa meditação. Era D. Firmina Mascarenhas, a senhora que exercia junto de Aurélia o ofício de guarda-moça.
A viúva aproximou-se da conversadeira para estalar um beijo na face da menina, que só nessa ocasião acordou da profunda distração em que estava absorta.
Aurélia correu a vista surpresa pelo aposento; e interrogou uma miniatura de relógio presa à cintura por uma cadeia de ouro fosco.
Entretanto D. Firmina, acomodando a sua gordura semi-secular em uma das vastas cadeiras de braços que ficavam ao lado da conversadeira, dispunha-se esperar pelo almoço.
— Está fatigada de ontem? perguntou a viúva com a expressão de afetada ternura que exigia o seu cargo.
— Nem por isso; mas sinto-me lânguida; há de ser o calor - respondeu a moça para dar uma razão qualquer de sua atitude pensativa.
— Estes bailes que acabam tão tarde não podem ser bons para a saúde; por isso é que no Rio de Janeiro há tanta moça magra e amarela. Ora, ontem, quando serviram a ceia pouco faltava para tocar matinas em Santa Teresa. Se a primeira quadrilha começou com o toque do Aragão!... Havia muita confusão; o serviço não esteve mau, mas andou tão atrapalhado!...
Firmina continuou por aí além a descrever suas impressões do baile da véspera, sem tirar os olhos do semblante de Aurélia, onde espiava o efeito de suas palavras, pronta a desdizer-se de qualquer observação, ao menor indício de contrariedade.
Deixou-a a moça falar, desejosa de desprender-se de suas preocupações e embalar-se ao rumor dessa voz que ouvia, sem compreender. Sabia que a viúva conversava acerca do baile; mas não acompanhava o que ela dizia.
De repente, porém, interrompeu-a:
— Que tal achou a Amaralzinha, D. Firmina?
A velha fez semblante de recordar-se.
— A Amaralzinha?... É aquela moça toda de azul?
— Com espigas de prata nos cabelos e nos apanhados da saia; simples e de muito bom gosto.
— Lembra-me. É uma menina bem galante! afirmou a viúva.
— E bem-educada. Dizem que toca piano perfeitamente, e que tem uma voz muito agradável.
— Mas não costuma aparecer na sociedade. É a primeira vez que a encontramos; não me lembro de a ter visto antes.
— Foi a primeira vez!
Pronunciando estas palavras, a moça parecia de novo sentir sua alma refranger-se atraída imperiosamente por esse pensamento recôndito que a absorvia.
Mas reagiu contra essa preocupação; e dirigiu-se à viúva em tom vivo e instante:
— Diga-me uma cousa, D. Firmina!
— O que é, Aurélia?
— Mas há de ser franca. Promete-me?
— Franca? Mais do que eu sou, menina? Se é este o meu defeito!...
A moça hesitava.
— Experimente, Senhora!
— Quem acha a senhora mais bonita, a Amaralzinha ou eu? disse afinal Aurélia, empalidecendo de leve.
— Ora, ora! acudiu a viúva a rir. Está zombando, Aurélia. Pois, a Amaralzinha é para se comparar com você?
— Seja sincera!
— Outras muito mais bonitas que ela não chegam a seus pés.
A viúva citou quatro ou cinco nomes de moças que então andavam no galarim e dos quais não me recordo agora.
— É tão elegante! disse Aurélia como se completasse uma reflexão íntima.
— São gostos!
— Em todo o caso é mais bem-educada do que eu?
— Do que você, Aurélia? Há de ser difícil que se encontre em todo o Rio de Janeiro outra moça que tenha sua educação. Lá mesmo, por Paris, de que tanto se fala, duvido que haja.
— Obrigada! É esta a sua franqueza, D. Firmina?
— Sim, senhora; a minha franqueza está em dizer a verdade, e não em escondê-la. Demais, isso é o que todos vêem e repetem. Você toca piano como o Arnaud, canta como uma prima-dona, e conversa na sala com os deputados e os diplomatas, que eles ficam todos enfeitiçados. E como não há de ser assim? Quando você quer, Aurélia, fala que parece uma novela.
— Já vejo que a senhora não é nada lisonjeira. Está desmerecendo os meus dotes, acudiu a menina sublinhando a última palavra com um fino sorriso de ironia. Então não sabe, D. Firmina, que eu tenho um estilo de ouro, o mais sublime de todos os estilos, a cuja eloqüência arrebatadora não se resiste? As que falam como uma novela, em vil prosa, são essas moças românticas e pálidas que se andam evaporando em suspiros; eu falo como um poema: sou a poesia que brilha e deslumbra!
— Entendo o que você quer dizer; o dinheiro faz do feio bonito, e dá tudo, até saúde. Mas repare bem, os seus maiores admiradores são justamente aqueles que não podem pretender sua riqueza; uns casados, outros já velhos...
— Quando pela primeira vez fumaram perto da senhora, não sentiu alguma cousa, um atordoamento?... Pois o ouro tem uma fumaça invisível, que embriaga ainda mais do que a do charuto de Havana, e até mesmo do que a desse nojento cigarro de papel, com que os rapazes de hoje se incensam. Toda essa gente que rodeia um velho ricaço, ministros, senadores e fidalgos, de certo que não espera casar-se com a burra do sujeito; mas sofre a atração do dinheiro.
— Agora mesmo, Aurélia, está você me dando razão e mostrando sua instrução. Quem há de dizer que uma menina de sua idade sabe mais de que muitos homens que aprenderam nas academias? E assim é bom; porque senão, com a riqueza que lhe deixou seu avô, sozinha no mundo, por força que havia de ser enganada.
— Antes fosse! murmurou a moça recaindo em sua meditação.
D. Firmina ainda proferiu algumas palavras em continuação da conversa; mas notou que a moça não lhe prestava a menor atenção, antes parecia esquivar-se a qualquer impressão exterior, para mais profundamente reconcentrar-se.
Então com o tacto dessas almas feitas para a domesticidade moral, ergueu-se; e trocando alguns passos pela sala, disfarçou a reparar nas estatuetas de alabastro e vasos de porcelana colocados no mármore vermelho dos consolos.
Assim de costas para a conversadeira, mostrava-se desapercebida daquele enlevo de Aurélia, a quem de certo havia de contrariar, quando voltasse da distração à presença de uma pessoa a escrutar-lhe nos gestos o segredo dos pensamentos.
Não teriam decorrido cinco minutos quando ouvia D. Firmina um som trépido e cristalino, que ela bem conhecia por tê-lo muitas vezes escutado. Voltou-se e viu Aurélia, cujos lábios de nácar vibravam ainda com o harpejo daquele ríspido sorriso.
A gentil menina surgira de sua pensativa languidez, como uma estátua de cera que transmutando-se em jaspe de repente, se erigisse altiva e desdenhosa, desferindo de si os lívidos e fulvos reflexos do mármore polido.
Ela caminhou para as janelas, e com petulância nervosa suspendeu impetuosamente as duas venezianas, que pareciam um peso excessivo para sua mão fina e mimosa.
A torrente da luz precipitando-se pela abertura das janelas, encheu o aposento; e a moça adiantou-se até a sacada, para banhar-se nessas cascatas de sol, que lhe borbotavam sobre a régia fronte coroada do diadema de cabelos castanhos, e desdobravam-se pelas formosas espáduas como uma túnica de ouro.
Embebia-se de luz. Quem a visse nesse momento assim resplandecente, poderia acreditar que sob as pregas do roupão de cambraia estava a ondular voluptuosamente a ninfa das chamas, a lasciva salamandra, em que se transformara de chofre a fada encantada.
Depois de saturar-se de sol como a alva papoula, que se cora aos beijos de seu real amante, a moça dirigiu-se ao piano e estouvadamente o abriu. Dos turbilhões da estrepitosa tempestade cromática, que revolvia o teclado, desprendeu-se afinal a sublime imprecação da Norma, quando rugindo ciúme, fulmina a perfídia de Polião.
Moderando os arrojos dessa instrumentação vertiginosa, para fazer o acompanhamento, a moça começou a cantar; mas às primeiras notas, sentindo-se tolhida pela posição, abandonou o piano, e em pé, no meio da sala, roçagando a saia do roupão como se fosse a cauda do pálio gaulês, ela reproduziu com a voz e o gesto, aquela epopéia do coração traído, que tantas vezes tinha visto representada por Lagrange.
A ferocidade da mulher enganada, sanha da leoa ferida, nunca teve para exprimi-la, nem mesmo na exímia cantora, uma voz mais bramida, um gesto mais sublime. As notas que desatavam-se dos lábios de Aurélia, possantes de vigor e harmonia, deixavam após si um frêmito, que lembrava o silvo da serpente, sobretudo quando este braço mimoso e torneado distendia-se de repente com um movimento hirto para vibrar o supremo desprezo.
D. Firmina, apesar de habituada desde muito ao caráter excêntrico de Aurélia, contemplava-a com surpresa nesse momento; e desconfiava que alguma cousa de extraordinário ocorrera na vida da moça, que a tornara a princípio tão pensativa, e produzia agora esse acesso sentimental.
Entretanto ela com a mesma volubilidade que a tomara ao erguer-se da conversadeira, correu para D. Firmina, travou-lhe do pulso fazendo-a de Polião, e deu imediatamente um jeito cômico à cena que terminou em risadas.