No centro da sala estava a mesa onde os mais finos cristais irisavam-se aos raios da luz, cambiando o esmalte da fina porcelana e as cores das frutas apinhadas em corbelhas de prata.
O almoço era um banquete, não pela quantidade, o que seria de mau gosto; mas pela variedade e delicadeza das iguarias.
Pelas janelas abertas sobre o jardim entravam, com a brisa da manhã e a claridade de um formoso dia de verão, a fragrância das flores e o trinado dos canários de um elegante viveiro.
Achavam-se na sala Aurélia e D. Firmina.
A moça recostara-se em uma cadeira de balanço no claro de uma janela, de modo que seu gracioso vulto imergia-se na plena luz. Ao vê-la radiante de beleza e risos, se acreditava que ela de propósito afrontava o esplendor do dia, para ostentar a pureza imaculada de seu rosto, e sua graça inalterável.
Trajava um roupão de linho de alvura deslumbrante; eram azuis as fitas do cabelo e do cinto, bem como o cetim de um sapato raso, que lhe calçava o pé como o engaste de uma pérola.
Fernando parou um instante ao entrar na sala; depois do que, firmando-se na resolução tomada, dirigiu-se a sua mulher para saudá-la. Todavia não calculava ele de que modo se desempenharia desse dever.
Aurélia viu o movimento. A saudação matinal do marido ia despertar suspeitas em D. Firmina.
Seixas adiantava-se. A moça ergueu-se estendendo-lhe a mão, e inclinando a cabeça sobre a espádua com uma ligeira inflexão, apresentou-lhe a face, para receber o casto beijo da esposa.
Aquela mão porém estava gelada e hirta, como se fora de jaspe. A face, pouco antes risonha e faceira, contraíra-se de repente em uma expressão indefinível de indignação e desprezo.
Fernando só reparou nessa mutação quando seus lábios roçavam a fria cútis, cuja pubescência erriçava-se como o pêlo áspero do feltro. Retraiu-se involuntariamente, embora naquela circunstância a carícia dessa mulher, de quem era marido, o humilhasse mais do que sua repulsa.
— Vamos almoçar! disse a moça dirigindo-se à mesa e acenando ao marido e a D. Firmina que se aproximassem.
Já não se via em seu belo semblante o menor traço do sarcasmo que o demudara; nem se conceberia que essa esplêndida formosura pudesse transformar-se na satânica imagem que Fernando vira pouco antes.
Aurélia tomou a cabeceira da mesa. Fernando ficou à sua direita, em frente a D. Firmina.
A princípio a moça ocupou-se unicamente em servir, depois trincando nos alvos dentes a polpa vermelha de uma lagosta, animou a conversação com uma palavra viva e cintilante.
Nunca ela tinha revelado como nessa manhã, a graça de seu espírito e o brilho de sua imaginação. Também nunca o sorriso borbulhara de seus lábios tão florido; nem sua beleza se repassara daquelas efusões de contentamento.
Seixas se distraíra a ouvi-la. Por tal modo embebeu-se ele no enlevo da gentil garrulice, que chegou a esquecer por momentos a triste posição em que o colocara a fatalidade junto dessa mulher.
Nas folgas que o apetite deixava à reflexão, D. Firmina admirava-se do desembaraço que mostrava a noiva da véspera, na qual melhor diria um casto enleio.
Mas já habituada à inversão que têm sofrido nossos costumes com a invasão das modas estrangeiras, assentou a viúva que o último chique de Paris devia ser esse de trocarem os noivos o papel, ficando ao fraque o recato feminino, enquanto a saia alardeava o desplante do leão.
— Efeitos da emancipação das mulheres! pensava consigo.
— Quer que lhe sirva desta salada, ou daquela empada de caça? perguntou Aurélia notando que Seixas estava parado.
— Nada mais, obrigado.
Seixas tinha comido um bife com uma naca de pão; e bebera meio cálice do vinho que lhe ficava mais próximo, sem olhar o rótulo.
— Não almoçou! tornou a moça.
— A felicidade tira o apetite, observou Fernando a sorrir.
— Nesse caso eu devia jejuar, retorquiu Aurélia gracejando. É que em mim produz o efeito contrário; estava com uma fome devoradora.
— Nem por isso tem comido muito, acudiu D. Firmina.
— Prove desta lagosta. Está deliciosa, insistiu Aurélia.
— Ordena? perguntou Fernando prazenteiro, mas com uma inflexão particular na voz.
Aurélia trinou uma risada.
— Não sabia que as mulheres tinham direito de dar ordens aos maridos. Em todo o caso eu não usaria do meu poder para cousas tão insignificantes.
— Mostra que é generosa.
— As aparências enganam.
O torneio deste diálogo não desdizia do tom de nascente familiaridade, próprio de dois noivos felizes; haviam entonações e relances d’olhos, que os estranhos não percebiam, e que eles sentiam pungir como alfinetes escondidos entre os rofos de cetim.
Da sala de jantar Fernando, acabado o almoço, passou à saleta de conversa, onde com pouca demora o acompanhou Aurélia. D. Firmina para não perturbar o mavioso a sós dos noivos, saiu a pretexto de encomendas.
Seixas tinha aberto maquinalmente um dos jornais do dia, que estavam em uma bandeja de charão com pés de bronze dourado, junto ao sofá. Quando Aurélia entrou, ele ofereceu-lhe a folha que tinha em mão e as outras, à escolha.
— Agradeço, disse Aurélia sentando-se no sofá.
O criado apresentava a Seixas com um porta-charutos de araribá-rosa tauxiado de prata e guarnecido de legítimos havanas, uma lâmpada também de prata, em cujo bico cintilava a flama azulada do espírito de vinho.
— Obrigado, tenho os meus, disse Fernando recusando com um gesto os charutos oferecidos, e tirando a carteira do bolso.
— E estes de quem são? perguntou vivamente Aurélia, designando os havanas apresentados pelo criado.
Seixas fez um movimento para responder; lembrando-se que não estavam sós, retraiu-se:
— Referia-me aos que trouxe comigo, disse frisando as últimas palavras.
— São melhores talvez.
— Ao contrário; mas estou habituado com eles. Não lhe incomoda a fumaça?
— Faria prova de mau gosto a senhora que atualmente mostrasse repugnâncias dessa ordem; além de que preciso de conformar-me aos hábitos de meu marido.
— Por este motivo, não. Como seu marido não tenho hábitos, e somente deveres.
Aurélia cortou o fio a este diálogo, perguntando com indiferença:
— Que trazem de novo os jornais?
— Ainda não os li. Que mais lhe interessa? Naturalmente a parte noticiosa, o folhetim...
Ao mesmo tempo abria Seixas as folhas uma após outra, e percorrendo-as com os olhos, lia em voz alta para Aurélia, o que encontrava de mais interessante. A moça fingia ouvi-lo; mas seu espírito repassava interiormente os últimos acontecimentos de sua vida, e interrogava as incertezas do futuro, que ela mesma em parte se havia traçado.
Todavia a presença do criado fez-lhe reparar que Seixas ainda tinha por acender o charuto.
— Não fuma? perguntou ao marido.
— Permite?
— Já lhe disse que não me incomoda! retorquiu a moça com um assomo de impaciência.
— Desculpe-me; não tendo recebido um consentimento formal, receei contrariá-la.
— Há receios que mais parecem desejos! observou a moça com ironia.
— O tempo a convencerá de minha sinceridade.
— O tempo!... Ah! se realizasse tudo quanto dele se espera! exclamou Aurélia com acerba irrisão.
Subtraindo-se a esse ímpeto de sarcasmo, que sublevou-lhe a alma dorida, a moça refugiou-se numa banalidade.
— O melhor é não confiar nele e viver do presente. O verdadeiro livro é o jornal com a crônica da véspera e os anúncios do dia.
Seixas continuou a percorrer os jornais, como se acedesse ao gosto de Aurélia. Nesse rápido exame ia lendo as epígrafes, a ver se alguma tinha a virtude de excitar a curiosidade da moça.
— Como são interessantes estas folhas! disse Aurélia que buscava um pretexto para expandir a irritação íntima. Quando me lembro de abri-las, o que faço raras vezes porque não tenho braços que cheguem para essa difícil empresa, sucede-me sempre julgar que estou lendo um jornal do ano anterior.
— A culpa não é do jornal, mas da cidade em que se publica, e da qual deve ser, como disse há pouco, o livro diário, ou a história da véspera.
— Perdão, não me lembrava que também foi jornalista.
Como Aurélia se calasse, e as folhas não fornecessem mais assunto à conversação, Seixas aproveitou a censura freqüentemente dirigida à imprensa periódica em nosso país, para fazer sobre o tema algumas variações, com que enchesse o tempo.
Está entendido que tratou a questão sob um ponto de vista ameno, que pudesse conciliar a atenção de uma senhora; Aurélia escutou-o alguns momentos com atenção; mas observando que o marido falava com o tom monófono e a pausa calculada de quem desempenha uma tarefa, e longe de dar franca expansão ao pensamento, ao contrário solicita o espírito rebelde, a moça interrompeu essa dissertação erguendo-se do sofá.
Deu algumas voltas pela saleta; percorreu com os olhos o aposento, reparando no papel, nos móveis e adereços, como se nunca os tivesse examinado, ou indagasse se nada faltava. Passou depois a observar atentamente as figurinhas de porcelana e outras quinquilharias que havia sobre os consolos, tirando-as de seu lugar e mudando-lhes a posição.
Daí encaminhou-se ao piano, que é para as senhoras como o charuto para os homens, um amigo de todas as horas, um companheiro dócil, e um confidente sempre atento. Ao abrir o instrumento, lembrou-se que não era próprio a uma noiva de véspera entregar-se a esse passatempo, quando vizinhos e criados, todos deviam supô-la àquela hora engolfada na felicidade de amar e ser amada.
Ah! ela não conhecia essa aurora mística do amor conjugal, que se lhe transformara em vigília de angústia e desespero. Mas adivinhava qual devia ser a transfusão mútua de duas almas, e compreendia que, ávidas uma da outra, não se podiam alhear em estranho passatempo.
Abandonando o piano, disfarçou em percorrer os livros de música, arrumados sobre o móvel apropriado, uma espécie de estante baixa de prateleiras verticais. Aí esteve a folhear apenas, solfejando à meia voz os trechos favoritos, e quiçá buscando um que respondesse aos recônditos pensamentos, ou antes que traduzisse o indefinível sentimento de sua alma naquele instante.
Parece que achou afinal essa nota simpática, pois sua voz desprendia-se num alegro de bravura, quando lembrou-se que não estava só. Volveu um olhar para o sofá, onde havia deixado o marido, que porventura a estaria observando, surpreso de sua mímica.
Seixas, ao apartar-se a moça, tomara de cima da mesa um álbum de fotografias, e entretinha-se em ver as figuras.
— Está vendo celebridades? perguntou a moça, que viera de novo sentar-se ao sofá.
Fernando compreendeu que a pergunta não era senão malha para travar a conversa, e dispôs-se a satisfazer o desejo da mulher.
— É verdade, celebridades européias, pois ainda não as temos brasileiras; isto é, em fotografia, que no mais sobram. Admira que nesta terra tão propensa à especulação e ao charlatanismo, ainda ninguém se lembrasse de arranjar uns álbuns de celebridades nacionais. Pois havia de ganhar muito dinheiro; não só na venda de álbuns, mas sobretudo na admissão dos pretendentes à lista das celebridades.
— Diga antes ao rol.
— É com efeito mais expressivo.
— O que isso prova, observou Aurélia, é que a literatura tem feito maiores progressos em nosso país do que a arte; pois se não me engano já há por aí, dentro e fora do país, empresas montadas para exploração da biografia.
— Tem razão.
— Escapou de casar-se com uma contemporânea ilustre, acrescentou Aurélia grifando as últimas palavras com o mais fino sorriso.
— Ah! não sabia! Lamento profundamente não ter de acumular essas tantas honras que recebi.
— Pois estivesse ameaçada de andar por aí em não sei que revista ou gazeta, na qualidade de brasileira notável. Creio eu que o meu título à celebridade era a herança de meu avô. Foi-me preciso tomar umas dez assinaturas para defender-me da conspiração armada contra a minha obscuridade, e livrar-me da glória que esses senhores pretendiam infligir-me.
Nesta conversa e na revista dos retratos consumiram os dois muito tempo.
A pêndula acabava de soar uma hora. O criado abriu com estrépito a porta da sala da jantar, como para advertir de sua entrada; e disse aportuguesando o termo inglês luncheon segundo o costume geral:
— O lanche está pronto.
— Vamos? perguntou a moça erguendo-se.
Seixas fechou o álbum e acompanhou a mulher.
O criado, que vira os dois noivos inclinados sobre o álbum, sorriu com ar brejeiro.
Fernando percebeu o sorriso e corou.