Fernando dirigiu-se a seu aposento com tanta precipitação, que esqueceu-lhe o objeto fechado em sua mão; só deu por ele no toucador, ao cair-lhe no chão.
Abriu então o papel. Havia dentro uma chave; e presa à argola uma tira de papel com as seguintes palavras escritas por Aurélia: chave de seu quarto de dormir.
Ao ler estas palavras Seixas tornou-se lívido; e lançou um olhar esvairado para o reposteiro da câmara, e em que ele que entrara na véspera palpitante de amor e que não poderia nunca mais penetrar, senão ébrio de vergonha e marcado com o ferrete da infâmia.
Com o movimento que fez descobriu uma modificação que sofrera o aposento. Fora arredado o guarda-roupa, que ocultava uma porta agora patente, e apenas coberta por uma cortina também de seda azul.
A chave servia nessa porta que dava para uma alcova elegante, mobiliada com uma cama estreita de érable e outros acessórios. Era o mais casquilho dormitório de rapaz solteiro que se podia imaginar.
Seixas adivinhou pela onda de fragrância derramada no aposento, que Aurélia ali estivera pouco antes. Talvez saíra ao ouvir o rumor da chave na fechadura.
— Meu Deus! exclamou o mancebo comprimindo o crânio entre as palmas das mãos. Que me quer esta mulher? Não me acha ainda bastante humilhado e abatido? Está se saciando de vingança! Oh! ela tem o instinto da perversidade. Sabe que a ofensa grosseira ou caleja a alma, se é infame, ou a indigna se ainda resta algum brio. Mas esse insulto cortês cheio de atenção e delicadezas, que são outros tantos escárnios; essa ostentação de generosidade com que a todo o momento se está cevando o mais soberano desprezo; flagelação cruel infligida no meio dos sorrisos e com distinção que o mundo inveja; como este, é que não há outro suplício para a alma que se não perdeu de todo. Por que não sou eu o que ela pensa, um mísero abandonado da honra, e dos nobres estímulos do homem de bem? Acharia então com quem lutar!
Seixas vergou a cabeça ao peso dessa reflexão.
— A força da resignação, essa porém hei de tê-la. Não me abandonará, por mais cruel que seja a provação.
Os dias seguintes, essa fase nascente da lua-de-mel, passaram como o primeiro. Entraram então os noivos na outra fase, em que o enlevo de se possuírem já permite, sobretudo ao homem, tornar às ocupações habituais.
No quinto dia Seixas apresentou-se na repartição, onde foi muito festejado por suas prosperidades. Tomaram os companheiros aquele pronto comparecimento por mera visita. Se quando pobre, sua freqüência somente se fazia sentir no livro do ponto, agora que estava rico ou quase milionário, com certeza deixaria o emprego ou quando muito o conservaria honorariamente, como certos enxertos das secretarias.
Grande foi pois a surpresa que produziu a assiduidade de Seixas na repartição. Entrava pontualmente às 9 horas da manhã e saía às 3 da tarde; todo esse tempo dedicava-o ao trabalho: apesar das contínuas tentações dos companheiros, não consumia como costumava outrora a maior parte dele na palestra e no fumatório.
— Olha, Seixas, que isto é meio de vida e não de morte! dizia-lhe um camarada repetindo pela vigésima vez esta banalidade.
— Vivi muitos anos à custa do Estado, meu amigo; é justo que também ele viva um tanto à minha custa.
Outra mudança notava-se em Seixas. Era a gravidade que sem desvanecer a afabilidade de suas maneiras sempre distintas, imprimia-lhes mais nobreza e elevação. Ainda seus lábios se ornavam de um sorriso freqüente; mas esse trazia o reflexo da meditação e não era como dantes um sestro de galanteria.
O casamento é geralmente considerado como a iniciação do mancebo na realidade da vida. Ele prepara a família, a maior e mais séria de todas as responsabilidades. Atualmente esse ato solene tem perdido muito de sua importância; indivíduo há que se casa com a mesma consciência e serenidade, com que o viajante aposenta-se em uma hospedaria.
Por isso estranhavam os colegas de Seixas aqueles modos tão diversos dos que tinha antes, em solteiro; e não concebendo que o casamento mudasse repentinamente a natureza do homem, atribuíam a transformação à riqueza; e à modéstia chamaram impostura.
Para chegar em tempo à repartição, tinha Seixas de almoçar mais cedo e só, o que poupava-lhe, e também a Aurélia, cerca de meia hora de suplício, que ambos se infligiam um ao outro com sua presença.
— Está muito assíduo agora à repartição! disse um dia a moça ao marido. Pretende algum acesso?
Seixas deixou cair o remoque e respondeu francamente:
— É verdade, há uma vaga, e desejo obter a preferência.
— Que ordenado tem esse emprego?
— Quatro contos e oitocentos.
— E precisa disso?
— Preciso.
Aurélia soltou uma risada argentina, quanto má e venenosa.
— Pois então seja antes meu empregado; asseguro-lhe o acesso.
— Já sou seu marido, respondeu Seixas com uma calma heróica.
A moça continuou a gorjear o seu riso sarcástico; mas voltou as costas ao marido e afastou-se.
Seixas ia a pé tomar em caminho a gôndola, cujo ponto ficava distante da repartição. Uma vez a mulher o interpelou acerca disso:
— Por que não serve-se do carro, quando sai?
— Prefiro o exercício a pé. É mais higiênico; faz-me bem ao corpo e ao espírito.
— É pena que não tivesse feito seus estudos de higiene quando solteiro.
— Não imagina quanto o lamento. Mas sempre é tempo de aprender, e nestes poucos dias tenho aproveitado muito.
— A mim me parece que desaprendeu. Naquele tempo sabia que eu era rica, muito rica; hoje tem-me na conta de uma mulher, cujo marido anda de gôndola.
Fernando mordeu os beiços.
— A riqueza também tem sua decência. Casou-se com uma milionária, é preciso sujeitar-se aos ônus da posição. Os pobres pensam que só temos gozos e delícias; e mal sabem a servidão que nos impõe esta gleba dourada. Incomoda-lhe andar de carro? E a mim não me tortura este luxo que me cerca? Há cilício de crina que se compare a estes cíclicos de tule e seda que eu sou obrigada a trazer sobre as carnes, e que me estão rebaixando- a todo o instante, porque me lembra que aos olhos deste mundo, eu, a minha pessoa, a minha alma, vale menos do que esses trapos?
As últimas palavras pareciam escapar-se dos lábios da moça rorejadas de lágrimas. Seixas esquecendo a pungente alusão que sofrera pouco antes, fitou-a com olhos compassivos; mas ela recobrara já o tom de agressiva ironia:
— Assim o mundo achará em mim a sua criatura; a mulher, que festeja e enche de adorações. Eu serei para ele o que ele me fez.
Esse mundo, Fernando compreendeu que era o pronome de sua infelicidade e ambição. Restituído à realidade de sua posição de que o ia arrancando súbita comoção, disse:
— Pensa então que a decência de sua casa exige que seu marido ande de carro?
— Penso que me casei com um cavalheiro distinto, que sabe usar de sua fortuna, e não com um homem vulgar.
— Tem razão. Reclama o que lhe pertence, e eu seria um velhaco se lhe recusasse o que adquiriu com tão bom direito.
A chegada de D. Firmina interrompeu este diálogo.
De volta da repartição, encontrava Seixas a mulher na saleta; se ela estava só, cortejavam-se apenas, trocavam algumas palavras a esmo, depois do que recolhiam-se cada um a seu aposento e preparavam-se para o jantar. Se havia alguém com Aurélia, Seixas passava-lhe a mão pela cintura e roçava um beijo hirto por aquela face aveludada que se crispava ao seu hálito frio. Depois do jantar vinha o passeio ao jardim. Era nessa ocasião, quando escondidos pela folhagem, os supunham na troca de ternuras, que Aurélia crivava o marido de epigramas e motejos. De ordinário Seixas opunha a esse fogo rolante uma paciente indiferença que acabava por fatigar a moça.
Alguma vez, porém, acontecia retribuir Seixas o sarcasmo, o que irritava o ânimo já acerbo de Aurélia, cuja palavra tornava-se então de uma causticidade implacável.
À noite havendo visitas passavam no salão; quando estavam sós, ficavam na saleta; Seixas abria um livro; Aurélia fingia escutar os trechos que o marido lia em voz alta. Outras noites improvisava-se um jogo, em que tomava parte D. Firmina, e cuja fútil monotonia matava as horas.
Tinham perto de um mês de casados; durante esse tempo, vendo-se e falando-se todos os dias, não acontecera uma só vez pronunciarem o nome um do outro. Usavam do verbo na terceira pessoa; respeitavam entre si esse anônimo tácito, sublinhando a palavra com o gesto.
Uma ocasião, estava a sala cheia de gente. Aurélia dirigiu-se ao marido quando este de pé, a pequena distância, conversava com várias pessoas. Não respondeu Seixas; ela quis aproximar-se para chamar-lhe a atenção, mas cercavam-no os amigos.
— Fernando! disse então, fazendo um supremo esforço.
Seixas voltou-se atônito; encontrou nos lábios da mulher um sorriso que saturava de fel a doçura daquela voz.
— Chamou-me?
— Para acompanhar D. Margarida que se retira.
A mudança que se havia operado na pessoa de Seixas depois de seu casamento, fez-se igualmente sentir em sua elegância. Não mareou-se a fina distinção de suas maneiras e o apuro do trajo; mas a faceirice que outrora cintilava nele, essa desvanecera-se.
Sua roupa tinha o mesmo corte irrepreensível, mas já não afetava os requintes da moda; a fazenda era superior, porém de cores modestas. Já não se viam em seu vestuário os vivos matizes e a artística combinação de cores.
Aurélia notou não só essa alteração que dava um tom varonil à elegância de Seixas, como outra particularidade, que ainda mais excitou-lhe a observação. Dos objetos que faziam parte do enxoval por ela oferecido, não se lembrava de ter visto um só usado pelo marido.
Ao mesmo tempo a chocalhice dos escravos a advertiu de uma circunstância ignorada por ela e que se prendia à outra.
Ordenava ela à mucama que distribuísse pelas outras uns enfeites e vestidos já usados.
— Sinhá é muito esperdiçada! observou a mucama com a liberdade que as escravas prediletas costumam tomar. Não sabe poupar como senhor que traz tudo fechado, até o sabonete!
— Não tens que ver, nem tu nem as outras, com o que faz teu senhor! atalhou Aurélia com severidade.
Bem ímpetos sentiu a moça de interrogar a mucama; mas resistiu a esse desejo veemente para conservar o decoro de sua posição e não abaixar-se até à familiaridade com a criadagem.
Despediu a rapariga; mas resolveu verificar por si o que teria valido a Seixas essa reputação de avaro, que lhe conferia a opinião pública da cozinha e da cocheira.