No pavimento térreo, ao lado esquerdo, havia na casa das Laranjeiras uma varanda de estilo campestre, decorada com palmeiras vivas e corbelhas de parasitas.
Servia de sala de bilhar, e aí costumava Aurélia e o marido passarem a tarde, quando o tempo não convidava ao passeio no jardim.
Aí foi Seixas encontrar dois grandes quadros, colocados nos respectivos cavaletes. Na tela viam-se os esboços de dois retratos, o de Aurélia, e o seu, que um pintor notável, êmulo de Vítor Meireles e Pedro Américo, havia delineado à vista de alguma fotografia, para retocá-lo em face dos modelos.
Ao olhar interrogador do marido, Aurélia respondeu:
— É um ornato indispensável à sala.
— Julga que seja indispensável? Parecia-me ao contrário inconveniente reproduzir ainda que seja por esse modo, uma presença que tanto lhe deve importunar.
— Não se tira retrato d’alma. Felizmente!... observou Aurélia com o misterioso sorriso que desde certo tempo acompanhava essas palavras de sentido recôndito.
Seixas prestou-se passivamente ao papel de modelo. As sessões à tarde tinham ficado reservadas para ele a fim de não estorvar-lhe o trabalho da repartição.
Aurélia retirou-se, deixando-o em plena liberdade.
No dia seguinte, pela manhã, quando o pintor voltou para trabalhar em seu retrato, a moça antes de tomar posição fez-lhe suas observações acerca da expressão fria e seca da fisionomia de Seixas.
— Pintei o que vi. Se deseja um retrato de fantasia, é outra cousa, respondeu o artista.
— Tem razão; meu marido não anda bom. É melhor interromper seu trabalho por alguns dias; eu lhe mandarei aviso quando for ocasião.
Essa tarde Seixas achou Aurélia inteiramente outra da que era nos últimos tempos. Sua expressão meiga, e sobretudo a candura e singeleza de seu modo, restauraram em sua memória a imagem da formosa menina de Santa Teresa, a quem amara outrora.
Deixou-se aliciar por essa ilusão, embora estivesse bem convencido de que a veria dissipar-se de repente, e dolorosamente como as outras. Mas sua alma tinha necessidade de repouso e ainda mais do conforto de uma crença consoladora; abandonou-se àquela doce quimera e quis persuadir-se de que revivia um idílio de seu passado.
Aurélia trouxe a conversa para os assuntos que mais podiam seduzir um espírito poético e elegante como o de Seixas.
Falou de música, de versos, de flores e de artes. Quando a ironia não lhe acerava a palavra, ela tinha uma exuberância de afeto e ternura que manava de seus lábios e derramava em torno de si uma atmosfera de amor.
À noite tocou piano e cantou os trechos prediletos do marido.
Não era ela decerto, apesar dos elogios de D. Firmina, uma mestra, nem mesmo uma discípula exímia e correta. Mas poucas teriam seu gênio artístico; ela tocava por inspiração, e o canto eram as emoções de sua alma que ressoavam espontaneamente como os harpejos da brisa no seio da floresta.
Os dias seguintes correram na mesma doce intimidade. À tarde no jardim, ou admiravam juntos as flores, ou liam no mesmo livro algum romance menos interessante do que o seu próprio.
Seixas incumbia-se da leitura, e Aurélia escutava sentada a seu lado. Às vezes, ou porque se distraísse um momento, ou por sofreguidão de antecipar a narração, reclinava-se para correr os olhos pela página, onde ia brincar um anel de seus cabelos castanhos.
Foi no meio de uma dessas cenas que o pintor apareceu de novo. Seixas deu sinal de contrariedade, que a gentileza de Aurélia conseguiu desvanecer. Conservou durante a sessão a mesma expressão afável e graciosa, que pouco antes iluminava seu nobre semblante, e que fora a sua fisionomia de outrora, quando a subversão da existência ainda não o tinha revestido de gravidade melancólica.
Na manhã seguinte, Aurélia examinando o trabalho do pintor, viu palpitante de emoção a sorrir-lhe o homem que ela havia amado. Ele aí estava em face dela, destacando-se da tela, onde o pincel do artista o havia fixado com admirável felicidade. Era um desses retratos em que o modelo, em vez de impor-se, inspira o artista; e que deixam de ser cópias e tornam-se criações.
Ainda Aurélia estava enlevada em sua contemplação, quando chegou o artista, que recebeu seus elogios acompanhados de sinceros agradecimentos. O pintor supunha ter feito apenas uma obra de arte. Como podia ele suspeitar o segredo dessa mulher, viúva daquele marido vivo?
— O senhor há de tirar uma cópia desse retrato, para ficar na sala com o meu. Quanto a este, desejo que tenha o trajo com que me lembro de ter visto meu marido, quando o conheci. É uma surpresa que pretendo fazer-lhe. Compreende?
— Perfeitamente.
— Peço-lhe, porém, que não toque no rosto.
— Fique descansada.
Aurélia explicou ao pintor o trajo que devia figurar no retrato do marido e tomou posição para concluir o seu.
Ao voltar da repartição, notou Seixas que sua mulher não conservava a mesma disposição de ânimo em que a deixara na véspera. Não tornou à primitiva irritação, mas foi a pouco e pouco retraindo-se, e acabou por isolar-se de todo.
Passava os dias encerrada em seu toucador. Quando aparecia, era sempre distraída e tinha o aspecto dessas pessoas que se habituam a viver no mundo da fantasia, e que sentindo-se como aturdidas quando descem à realidade, refugiam-se em suas quimeras.
A casa das Laranjeiras tornara-se uma verdadeira solidão, habitada por dois cenobitas, que não se viam, nem tratavam, a não ser na hora de jantar.
Ao levantarem-se da mesa, Aurélia escondia-se no fundo de algum espesso caramanchão, de onde seguia de longe com os olhos o vulto do marido, que passeava pelo jardim.
À noite cada um tomava seu livro; Seixas lia; Aurélia aproveitava esses instantes de liberdade para tornar aos seus pensamentos, e aos suaves devaneios que abandonava ao sair do toucador.
D. Firmina a princípio estranhara os modos de Aurélia; mas era uma senhora de muito juízo, e bastante prática da vida. Atinou logo com a causa dessa alteração, e aproveitou a primeira oportunidade para dar mostra da sua perspicácia.
— Não acha Aurélia tão diferente do que era, Sr. Seixas?
Fernando surpreendido pela pergunta volveu os olhos para a mulher, cujo pálido semblante iluminado nesse momento por um reflexo do Sol no ocaso, tinha a diáfana aparência da cera.
— Algum incômodo passageiro. Precisa sair da cidade, passar algum tempo fora, na Tijuca ou em Petrópolis.
— Não tenho moléstia, respondeu Aurélia com indiferença.
— Moléstia não tem, Aurélia; mas é cousa que se parece, tornou a viúva. E os passeios no campo são excelentes para essas melancolias e desmaios que você anda sofrendo.
— Engana-se, não sofro cousa alguma.
— Ora, não disfarce! Quem não vê que aí anda volta de...
— De quê? insistiu Aurélia completamente alheia à intenção da viúva.
— De um neném!
Soltou a moça uma gargalhada; mas tão descompassada e ríspida que D. Firmina mais confirmou-se em sua convicção. Fernando erguera-se a pretexto de regar os tabuleiros de violetas de Parma, que rodeavam os pedestais das estátuas de bronze.
Decorreram meses. De repente, sem causa conhecida, com o constraste e o improviso que tinham as resoluções dessa mulher singular, operou-se uma revolução na casa das Laranjeiras, e na existência de seus moradores. Saiu Aurélia do isolamento a que se condenara durante tanto tempo, mas para lançar-se no outro extremo. Mostrava pelos divertimentos uma sofreguidão que nunca tivera, nem mesmo em solteira. Entrou a freqüentar de novo a sociedade, mas com furor e sem repouso.
Os teatros e os bailes não lhe bastavam; as noites em que não tinha convite, ou não havia espetáculo, improvisava uma partida que em animação e alegria, não invejava as mais lindas funções da Corte. Tinha a arte de reunir em sua casa as formosuras fluminenses. Gostava de rodear-se dessa corte de belezas.
Os dias destinava-os para as visitas da Rua do Ouvidor, e os piqueniques no Jardim ou Tijuca. Lembrou-se de fazer da praia de Botafogo um passeio, à semelhança dos Bois de Boulogne em Paris, do Prater em Viena, e do Hyde Park em Londres. Durante alguns dias ela e algumas amigas percorriam de carro aberto, por volta de quatro horas, a extensa curva da pitoresca enseada, espairecendo a vista pelo panorama encantador, e respirando a fresca viração do mar.
Os passantes olhavam-nas surpresos, e com um aspecto que traduzia a malignidade de suas conjeturas. Aurélia não fazia o mínimo caso dessas caras mexeriqueiras; mas as amigas incomodaram-se; e ela foi obrigada a abandonar o lindo passeio às aves de arribação.
Esta ânsia de festa e distrações sucedendo a uma inexplicável apatia e recolhimento, faria desconfiar que Aurélia buscava na sociedade, não o prazer, mas talvez o esquecimento. Porventura tentava aturdir o espírito, e arrancá-lo por este modo às cismas e enlevos em que se engolfara por tantos dias?
— Deve estranhar esta febre de divertimentos? disse ela ao marido. É uma febre, é; mas não tem perigo. Quero que o mundo me julgue feliz. O orgulho de ser invejada, talvez me console da humilhação de nunca ter sido amada. Ao menos gozarei de um aparato de ventura. No fim de contas, o que é tudo neste mundo senão uma ilusão, para não dizer uma mentira? Assim desculpe se incomodo, tirando-o de seus hábitos para acompanhar-me. Há de reconhecer que mereço esta compensação.
— É minha obrigação acompanhá-la, e me achará sempre disposto a cumpri-la. Moça, formosa e rica, deve gozar da vida que lhe sorri. O mundo tem esta virtude; o que não absorve, gasta. Daqui a algum tempo a senhora verá a existência por um prisma bem diverso, e do passado não lhe ficará senão a lembrança de um pesadelo de criança.
— É o que eu procuro justamente. Que não dera eu para apagar estas crenças, ou antes essas incômodas ilusões de minha infância, com que educou-se minha alma, e conformar-me à realidade da vida. Oh! se eu o conseguisse!...
A reticência desfez-se nos lábios da moça em um sorriso sardônico.
— Então nos havíamos de entender!