Aconteceu uma noite cair a conversa em assunto de literatura nacional.

Fato raro. Entre nós há moda para tudo nos salões; menos para as letras pátrias, que ficam à porta, ou quando muito vão para o fumatório servir de tema a dois ou três incorrigíveis.

Nesse dia fez-se uma exceção. Alguém, que tinha a prurir-lhe nos lábios a condenação dogmática de um livro que lera recentemente, apesar de publicado desde muito, aproveitou o momento para essa execução literária.

— Já leram a Diva?

Respondeu um silêncio cheio de surpresa. Ninguém tinha notícia do livro, nem supunham que valesse a pena de gastar o tempo com essas cousas.

— É um tipo fantástico, impossível! sentenciou o crítico.

Acrescentou ele ainda algumas cousas acerca do romance, cujo estilo censurou de incorreto, cheio de galicismos, e crivado de erros de gramática. O desenlace especialmente provocou acres censuras.

A crítica, por maior que seja a sua malignidade, produz sempre um efeito útil que é de aguçar a curiosidade. O mais rigoroso censor mau grado seu presta homenagem ao autor, e o recomenda.

Pela manhã Aurélia mandou comprar o romance; e o leu em uma sesta, ao balanço da cadeira de palha, no vão de uma janela ensombrada pelas jaqueiras cujas flores exalavam perfumes de magnólias.

À noite apareceu o crítico.

— Já li a Diva, disse depois de corresponder ao cumprimento.

— Então? Não é uma mulher impossível?

— Não conheço nenhuma assim. Mas também só podia conhecê-la Augusto Sá, o homem que ela amava, e o único ente a quem abriu sua alma.

— Em todo o caso é um caráter inverossímil.

— E o que há de mais inverossímil que a própria verdade?- retorquiu Aurélia repetindo uma frase célebre. Sei de uma moça... Se alguém escrevesse a sua história, diriam como o senhor: "É impossível! Esta mulher nunca existiu." Entretanto eu a conheci.

Mal pensava Aurélia que o autor de Diva teria mais tarde a honra de receber indiretamente suas confidências e escrever também o romance de sua vida, a que ela fazia alusão.

Nessa noite, entre as novidades do dia que deram tema à palestra, houve uma que bastante afligiu Aurélia. Corria que Eduardo Abreu estava dominado pela idéia do suicídio. Um de seus camaradas que vinha com ele de Niterói, o impedira de precipitar-se ao mar da borda da barca; outro o surpreendera com um revólver no bolso.

No dia seguinte houve espetáculo no teatro lírico. Aurélia escreveu a Adelaide Ribeiro um bilhete oferecendo-lhe o seu camarote e prometendo-lhe sua companhia. As duas senhoras não tinham relações íntimas; apenas haviam trocado entre si as visitas de rigor depois do casamento.

Aurélia aproveitou o pretexto da ópera nova não para estreitar essas relações cerimoniosas, mas ter ocasião de falar com o Dr. Torquato Ribeiro.

Às oito horas, quando Aurélia entrou no camarote pelo braço de Seixas, já encontrou Adelaide com o marido.

As duas moças lembrando-se que iam passar a noite face a face, instintivamente sem propósito, por uma irresistível emulação, haviam-se esmerado. Ambas estavam no esplendor- de sua beleza. Mas curiosa antítese: Adelaide, a pobre, vinha no maior apuro do luxo, com toda a garridice e requintes da moda. Aurélia, a milionária, afetava extrema simplicidade. Vestiu-se de pérolas e rendas; só tinha uma flor, que era a sua graça.

Ao levantar-se o pano, a dona do camarote como de costume ocupou o lado da cena, reservando o lugar de honra para sua convidada. Os maridos revezaram-se, ficando Ribeiro perto de Aurélia, e Seixas da parte de Adelaide.

Passada a primeira curiosidade que desperta sempre as decorações e trajos de uma cena ainda não vista, Aurélia voltando-se para atender à amiga que lhe falava, notou a posição e atitude de Seixas.

Este recostara-se à divisão do camarote, e observava a cena por cima do ombro de Adelaide; mas à moça pareceu que a vista do marido não chegava à rampa, e refrangia-se como uma réstia de sol diante do obstáculo que se lhe antepunha à menor oscilação do talhe esbelto da mulher de Ribeiro.

Se Adelaide inclinava-se à frente para trocar alguma observação, bombeava graciosamente diante de Fernando as espáduas que a luz do gás esbatendo-se em cheio jaspeava. Se a moça apoiava-se indolentemente à coluna, era o seu lindo colo vazado por decote de ninfa, que se oferecia aos olhos de Fernando.

Aurélia agitava o leque de madrepérola com um movimento rápido e nervoso, que fazia crepitarem as aspas violentamente batidas umas contra as outras. Duas ou três espedaçaram-se entre os dedos crispados.

Às vezes dardejava um olhar imperioso ao marido para adverti-lo de sua inconveniência. Outras examinava a fisionomia de Ribeiro, com o sentido de observar o efeito que nele produzia aquela faceirice da mulher. Mas Seixas estava -completamente absorvido na cena, ou no que lhe ficava ao rumo da cena, e Ribeiro passava revista de binóculo aos camarotes.

Quanto a Adelaide, toda a satisfação de brilhar, nem reparava na impaciência da amiga, nem se apercebia que o excessivo esvazamento de seu corpinho, com o requebro que imprimia ao talhe, desnudava-lhe quase todo o busto aos olhos do homem a quem voltava as costas. Sente a estátua o olhar que insinua-se entre os véus transparentes? A mulher da moda tem a cútis da estátua quando se veste para o baile.

Aurélia não pôde conter-se afinal.

— Troquemos de lugar, Fernando? A luz do gás está incomodando-me a vista.

— Venha para aqui! disse Adelaide querendo ceder-lhe a cadeira.

— Não: ali estou melhor; fico na sombra.

No intervalo saíram a passear no salão. A lembrança foi de Aurélia que desejava uma ocasião de dizer algumas palavras em particular ao Torquato. Antes de sair, porém, insistiu com Adelaide para que pusesse a capa.

— Pode-se resfriar. Está úmido.

— Ao contrário; faz um calor!

— Não facilite.

E cobriu-lhe os ombros com sua própria capa que agasalhava mais.

Seixas ofereceu o braço a Adelaide, como era de rigor; Aurélia seguindo ao braço de Ribeiro, e sem perdê-los de vista, começou a conversar com seu cavalheiro.

— Ontem tive uma notícia que me afligiu; o Eduardo Abreu tentou suicidar-se.

— Já me disseram.

— E parece que não abandonou a idéia. Quero salvá-lo dessa loucura: é um dever para mim, e um tributo que pago à memória de minha mãe. Posso contar com o senhor?

— Permita que não responda a esta pergunta. Diga-me o que devo fazer.

— Obrigada. Basta que o traga à minha casa, e faça que a freqüente. Ele foi rico; perdeu a riqueza, e com ela os amigos, a consideração, tudo que lhe tornava doce a existência. Nada mais natural do que olhar para o mundo como um inimigo a quem deve fugir. Se porém no meio desse deserto moral em que se acha surgisse uma idéia, uma vontade, um sentimento consolador, esse elo o prenderia de novo à existência.

— Mas não tem receio? observou Ribeiro hesitando.

— Pensa que ainda não esteja de todo extinta a sua paixão? É justamente com o que eu conto.

— E seu marido?

— É meu marido, respondeu a moça erguendo a cabeça com serena altivez.

Ribeiro compreendeu a palavra e o gesto. Em verdade, o homem que tinha a suprema ventura de ser o esposo querido dessa mulher, podia suspeitá-la?

— Suponha-se em seu lugar, o senhor que sabe uma parte de minha história. Depois do que lhe dei, a ele, julgar-se-ia com direito a esse triste sacrifício da vida de um infeliz?

— Não, certamente.

Nesse instante, Aurélia que distraíra-se com a conversa, viu Adelaide já sem a capa, e suspensa ou antes enlaçada ao braço de seu marido com um abandono que ela, sua mulher, não se animaria a mostrar em público.

Aurélia por um impulso que não pôde conter, apesar do império que se habituara a conservar sobre si, deixou o braço de Ribeiro para lançar-se ao encontro do outro par e separou os dois, insinuando-se entre eles. Aí recobrou-se, ao perceber a surpresa que se pintava no semblante dos outros, buscou disfarçar, afetando uma risada e trançando no seu o braço da mulher de Ribeiro.

— Escute, quero dizer-lhe um segredo, D. Adelaide!

Afastou-se levando a amiga. O segredo foi um remoque a propósito de certa loureira que passava; e depois uma indireta ao desgarro de certas senhoras, que timbram em imitar aquelas a quem mais desprezam.

— Dê-me a minha capa! disse Aurélia com rispidez a Seixas.

Antes que este pudesse satisfazê-la, tirou-lhe da mão a caxemira que Adelaide tinha dado a guardar, embrulhou-se nela, e tomou o braço do marido.

— Vamos?

Seixas admirado deixou-se conduzir, supondo que tornavam ao camarote. Ao chegarem defronte da escada, Aurélia esperou para despedir-se de Adelaide.

— Já se retira? perguntou a amiga cada vez mais surpresa.

— Prometi a minha madrinha, D. Margarida Ferreira, ir vê-la esta noite. Passei por aqui somente para gozar da sua companhia.

Aurélia tivera esta lembrança, no caminho do salão para o camarote; era uma excelente explicação de seu descaso de tomar à amiga o braço do marido, e o melhor pretexto para cortar de vez o desagradável incidente.

Seixas acompanhou a mulher, sem a mínima observação. Entraram no carro; o cocheiro que não recebeu ordem alguma, dirigiu-se a Laranjeiras. D. Margarida Ferreira morava em Andaraí.

— Não vai à casa de sua madrinha?

A resposta foi breve e seca:

— Não; já é tarde.

Aurélia revoltava-se contra si mesma, por causa daquele momento de fragilidade. Como é que ela depois de haver arrebatado à sua rival o homem a quem amava, e de haver desdenhado esse triunfo, por indigno de sua alma nobre, dava a essa rival o prazer de recear-se de suas seduções?

Descontente, contrariada, cogitava uma vindita desse eclipse de seu orgulho.

— O que é o ciúme? disse de repente sem olhar o marido, e com um tom incisivo.

Seixas compreendeu que aí vinha a refrega e preparou-se, chamando a si toda a calculada resignação de que se costumava revestir.

— Exige uma definição fisiológica, ou a pergunta é apenas mote para conversa?

— Acredita na fisiologia do coração? Não lhe parece um disparate, esta ciência pretensiosa que se mete a explicar e definir o incompreensível, aquilo que não entende o próprio que o sente, e que sente-se, sem ter muitas vezes a consciência desse fenômeno moral? Só há um fisiologista, mas esse não define, julga. É Deus, que formando sua criatura do limo da terra, como ensina a Escritura, deixou-lhe ao lado esquerdo, por amassar, uma porção de caos de que a tirou. Quanto ao ciúme, todos nós sabemos mais ou menos a significação da palavra. O que eu desejava era saber sua opinião sobre este ponto: se o ciúme é produzido pelo amor?

— Assim pensam geralmente.

— E o senhor?

— Como nunca o senti, não posso ter opinião minha.

— Pois tenho-a eu, e por experiência. O ciúme não nasce do amor, e sim do orgulho. O que dói neste sentimento, creia-me, não é a privação do prazer que outrem goza, quando também nós podemos gozá-lo e mais. É unicamente o desgosto de ver o rival possuir um bem que nos pertence ou cobiçamos, ao qual nos julgamos com direito exclusivo, e em que não admitimos partilha. Há mais ardente ciúme do que o do avaro por seu ouro, do ministro por sua pasta, do ambicioso por sua glória? Pode-se ter ciúme de um amigo, como de um traste de estimação, ou de um animal favorito. Eu quando era criança tinha-o de minhas bonecas.

Aurélia calou-se à espera da réplica; prolongando-se a pausa continuou:

— Um exemplo. Há pouco, no teatro, quando vi o modo por que a Adelaide Ribeiro lhe dava o braço, tive ciúmes do senhor. Entretanto eu não o amo, bem sabe, e não o posso amar!

— Esta prova é decisiva. E a senhora não acredita na fisiologia? Quer melhor definição? O ciúme é o zelo do senhor pela cousa que lhe pertence.

— Ou pessoa! acrescentou Aurélia com maldade.

— Pela cousa que lhe pertence, insistiu Seixas; seja essa animada ou inanimada.

— Temos ainda outra prova em favor de minha opinião. O senhor que amou tanto e tantas vezes, nunca teve ciúmes; há pouco me confessou.

— E como o ciúme é o sintoma do orgulho, ou em outros termos, da dignidade, a conseqüência...

— É lógica; mas eu a dispenso. Preferia que o senhor me recitasse alguma de suas poesias. Por exemplo - O Capricho.