Tinha saído o último dos convidados. Seixas voltava de conduzir ao carro D. Margarida Ferreira. Aurélia que o esperava, deu-lhe boa-noite e ia retirar-se. Fernando a atalhou:
— Desejo dar-lhe uma explicação!
— É inútil.
— Não tive intenção de ofendê-la.
— Decerto; um cavalheiro tão delicado não podia injuriar uma senhora.
— Uma cousa desagradável que ouvi e que me afligiu profundamente, tirou-me do meu natural. Não estava calmo; em todo o caso referi-me unicamente à minha posição, sem desígnio de qualquer alusão...
— É a história de ontem, que o senhor me está contando! exclamou Aurélia e apontou para o mostrador da pêndula que marcava duas horas. Tratemos de amanhã. Vamos dormir.
Fazendo ao marido uma risonha mesura, a moça deixou-o na sala e recolheu-se a seus aposentos, onde a esperava a mucama para despi-la.
— Podes ir; não preciso de ti.
Aurélia conservava de sua pobreza o costume de bastar-se para o serviço de sua pessoa; como não gostava de entregar seu corpo a mãos alheias, nem consentia que outros olhos que não os seus lhe devassassem o natural recato, poupava sempre que podia a mucama, a qual já não estranhava esse modo.
Fechada a porta por dentro, a moça em um instante operou a sua metamorfose. O trajo de baile ficou sobre o tapete, defronte do espelho, como as asas da borboleta que finou-se no seio da flor, surgiu dali, daquele desmoronamento de sedas, a casta menina envolta em seu alvo roupão de cambraia.
Sentou-se no sofá onde estivera poucas horas antes com Seixas, e ficou pensativa. Até que levantou-se para ir correr a cortina ao quadro e acender a arandela próxima.
Esteve contemplando o retrato e falou-lhe, como se tivesse diante de si o homem, de que via a imagem.
— Tu me amas!... exclamou cheia de júbilo. Negues embora, eu o conheço; eu o vejo em ti, e sinto-o em mim! Um homem de fina educação, como és, só insulta a mulher quando a ama e com paixão! Tu me insultaste, porque o meu amor era mais forte que tu, porque aniquilava a tua natureza, e fez do cavalheiro que és, um déspota feroz! Não te desculpes, não! Não foste tu, foi o ciúme, que é um sentimento grosseiro e brutal. Eu bem o conheço!... Tu me amas!... Ainda podemos ser felizes! Oh! então havemos de viver a dobro, para descontar esses dias que desvivemos!
A gentil senhora apoiou-se à moldura do quadro, e outra vez ficou pensativa.
— E por que não podemos ser felizes desde este momento? Ele está ali, pensando em mim; talvez me espera! Basta-me abrir aquela porta. Virá suplicar-me seu perdão, eu o receberei em meus braços; e estaremos para sempre unidos!
Um sorriso divino iluminou a formosa mulher. Ela desceu do estrado e atravessou a câmara de dormir, com o passo trêmulo, mas afouto, e as faces a arderem.
Chegou à porta; afastou o reposteiro azul; aplicou o ouvido; sorriu; murmurou baixinho o nome do marido; recordou as notas- apaixonadas com que a Stolz cantava a ária da Favorita: Oh! mio Fernando!
Afinal procurou a chave. Não estava na fechadura. Ela própria a havia tirado, e guardara na gaveta de sua escrivaninha de araribá-rosa. Voltou impaciente para procurá-la. Quando sua mão tocou o aço, a impressão fria do metal produziu-lhe um arrepio. Rejeitou a chave, e fechou a gaveta.
— Não! é cedo! É preciso que ele me ame bastante para vencer-me a mim, e não só para se deixar vencer. Eu posso, não o duvido mais, eu posso, no momento em que me aprouver, trazê-lo aqui, a meus pés, suplicante, ébrio de amor, subjugado ao meu aceno. Eu posso obrigá-lo a sacrificar-me tudo, a sua dignidade, os seus brios, os últimos escrúpulos de sua consciência. Mas no outro dia ambos acordaríamos desse horrível pesadelo, eu para desprezá-lo, ele para odiar-me. Então é que nunca mais nos perdoaríamos, eu a ele; o meu amor profanado, ele a mim, o seu caráter abatido. Então é que principiaria a eterna separação.
Depois de breve pausa, continuou falando outra vez ao retrato:
— Quando ele convencer-me do seu amor e arrancar de meu coração a última raiz desta dúvida atroz, que o dilacera; quando nele encontrar-te a ti, o meu ideal, o soberano de meu amor; quando tu e ele fores um, e que eu não vos possa distinguir nem no meu afeto, nem nas minhas recordações; nesse dia, eu lhe pertenço... Não, que já lhe pertenço agora e sempre, desde que o amei!... Nesse dia tomará posse de minha alma, e a fará sua!
Afastando-se, a moça levava ainda o pensamento de seu amor que subiu ao céu na primeira frase da prece da noite.
— Concedei, meu Deus, que seja breve! dizia ela cruzando as mãos, de joelhos no escabelo, e com os olhos em um crucifixo de prata e ébano.
Terminada a prece, Aurélia fechou o gás, deixando apenas no toucador uma lamparina, cujos frouxos vislumbres esclareciam o rosto do retrato.
De sua cama, onde se acabava de aninhar como uma rola, entre os finos lençóis de irlanda, com a cabeça no travesseiro, ela via pela porta aberta, lá no toucador, a imagem querida; e com os olhos nela adormeceu, passando, como costumava, de um sonho a outro, ou antes continuando o mesmo e único sonho, que era toda sua vida.
Os choques dessas duas almas, que uma fatalidade prendera, para arrojá-las uma contra outra, produziam sempre afastamento e frieza durante algum tempo. A remissão foi mais sensível e duradoura depois da noite do baile, porque também a crise fora mais violenta.
Durante estas pausas, Aurélia observava o marido, e assistia comovida à transformação que se fora operando naquele caráter, outrora frágil, mundano e volúbil, a quem uma salutar influência restituía gradualmente à sua natureza generosa.
Ela adivinhava ou antes via, que sua lembrança enchia a vida do marido e a ocupava toda. A cada instante, na menor circunstância, revelava-se essa possessão absoluta que tomara naquela alma. Havia em Fernando uma como repercussão dela.
Sabia que a atenção do marido nunca a deixava de todo, embora a solicitassem assuntos da maior importância, ou pessoas de consideração. Na sociedade, como em família, ela descobria através dos disfarces o olhar que a buscava, muitas vezes no reflexo do espelho, ou por entre uma fresta de cortina; e quando não era o olhar, o ouvido preso à sua voz.
As flores que Seixas regava eram as hortênsias, suas prediletas, dela Aurélia. Quando aproximava-se do viveiro, os canários mimosos da senhora mereciam todas as suas carícias. No jardim, como em casa, os sítios favoritos, fora ela quem os escolhera.
Aurélia não gostava de Byron, embora o admirasse. Seu poeta querido era Shakespeare, em quem achava não o simples cantor, mas o sublime escultor da paixão.
Muitas vezes aconteceu-lhe pensar que ela podia ser uma heroína dessa grande epopéia da mulher, escrita pelo imortal poeta. No dia do casamento, sua imaginação exaltada chegou a sonhar uma morte semelhante à de Desdêmona.
Seixas renegara o poeta de seus antigos devaneios, para afeiçoar-se ao trágico inglês, que ele outrora achava monstruoso e ridículo. Lia os mesmos livros que ela; os pensamentos de ambos encontravam-se nas páginas que um já tinha percorrido, e confundiam-se. Aplaudiam reciprocamente ou censuravam.
Poucas mulheres possuíam como Aurélia, esposo tão dedicado e tão preso à sua vida. Seixas não estava ausente senão o tempo do emprego; o resto do dia passava-o em sua companhia, na intimidade doméstica, ou nas visitas e reuniões.
Desde os primeiros dias, no seu propósito de passiva obediência, o marido se impusera a tarefa de lhe dar uma conta minuciosa das horas passadas fora de casa, dos acidentes da viagem, dos encontros que fizera, e até dos trabalhos da secretaria.
Aquilo que não passava de uma ironia do marido, veio a tornar-se um costume; e ela que a princípio incomodara-se com a fingida subserviência, não pôde mais tarde dispensar essa confidência que lhe restituía a pequena fração da existência de Seixas, vivida longe de si.
Mas não era unicamente a possessão dela pelo amor, que se operara em Seixas; era também a assimilação do caráter.
Como todas as almas que se regeneram, a de Seixas exercia sobre si mesma uma disciplina rigorosa. Tinha severidade que em outras circunstâncias haviam de parecer ridículas. A desculpa, o inofensivo pretexto tomavam para ele proporções de mentira. A amabilidade constante e geral era a hipocrisia; os indiferentes não tinham direito senão à polidez, e não podiam usurpar os privilégios da amizade.
Algumas vezes, Aurélia de parte o ouvira conversando acerca de outros reprovar essa existência de negaças e galanteios, em que ele consumira os primeiros anos da mocidade. Em qualquer ocasião revelava-se o seu modo grave e austero de considerar agora a sociedade, e de resolver as questões práticas da vida.
Como uma cera branda, o homem de coração e de honra se formara aos toques da mão de Aurélia. Se o artista que cinzela o mármore enche-se de entusiasmos ao ver a sua concepção, que surge-lhe do buril, imagine-se quais seriam os júbilos da moça, sentindo plasmar-se de sua alma, a estátua de seu ideal, encarnação de seu amor.
Assim, apesar da esquivança que sucedera ao baile, o drama dessa paixão encaminhava-se a um desenlace feliz, quando um incidente veio complicá-lo, perturbando seu desenvolvimento e precipitando o desfecho.
Já se tinha desvanecido a impressão da cena violenta, e voltava aos poucos a calma intimidade.
Fernando saíra para a repartição. Ao chegar à cidade avistou-se com um negociante seu antigo conhecido.
— Estimo muito encontrá-lo. Tenho uma boa notícia a dar-lhe. Aquele privilégio afinal desencantou-se.
— Qual privilégio? perguntou Seixas surpreso.
— Ora! Já esqueceu? Não faz mais caso dessas ninharias? O nosso privilégio de minas de cobre...
— Ah! já sei! atalhou o moço um tanto perturbado.
— Pois o Fróis sempre conseguiu vendê-lo em Londres. Deram uma bagatela; cinqüenta contos de réis. Em todo o caso é melhor que nada, porque do tal cobre das minas, meu caro, eu já não esperava nem um tacho. Veio-me a notícia pelo último paquete; fazia tenção de procurá-lo todos os dias, e faltou-me o tempo. Felizmente encontrei-o. Desculpe.
— Não há de que, Sr. Barbosa.
— Deduzidas umas despesas que se fizeram, toca-nos a cada um cousa de quinze contos e pouco. Quando quiser receber sua parte, é mandar-me a cautela que lhe passei.
— A cautela?
— Aposto que a vendeu?
— Não; devo tê-la em casa.
— Pois à vista dela... Passar bem.
Despediu-se o Barbosa, e Seixas continuou seu caminho, mas distraído e perplexo. A notícia dada pelo negociante sugeria-lhe várias e encontradas reflexões.
Aquele privilégio era um póstumo da antiga existência, que findara-se com o seu casamento. Começara a desenvolver-se a febre das empresas; um espertalhão teve a idéia da exploração de umas minas de cobre em São Paulo; e para obter a concessão lembrou-se de associar à especulação um negociante que fornecesse os fundos, e um empregado que abrisse os canais administrativos.
Seixas achava-se em relações com o Fróis, e veio a ser o empregado escolhido. A seu pedido o requerimento subiu ao ministro, como um balão, cheio do gás de pomposas informações. O despacho não se demorou. O oficial de gabinete o alcançara fumando um charuto com seu ministro, e dando-lhe os mais amplos esclarecimentos, não sobre a projetada empresa, mas sobre uma bela mulher, por quem a Excelência se apaixonara.
Concedido o privilégio, tratou o Fróis de negociá-lo, muito esperançoso de obter pelo menos uns trezentos contos. Mas essas esperanças mofaram, e os três associados chegaram a acreditar que suas minas de cobre em papel valiam menos de que o tacho velho, pelo qual os carcamanos sempre dão uma meia pataca.
Seixas não pensou mais nisso, e desde então ficou na ignorância das tentativas do Fróis e de seus cálculos de probabilidade, até receber nesse momento a notícia da venda do privilégio, que lhe trazia de repente e inesperadamente um lucro de quinze contos.
O primeiro e o mais vivo movimento que em Seixas produziu a notícia foi de alegria pelo ganho dessa quantia que tinha para ele um preço incalculável. Assaltou-o, porém, certo desgosto, pela origem daquele dinheiro. A intervenção de um empregado público nestes negócios, se outrora lhe parecera lícita, já não era apreciada por ele com a mesma tolerância.
Quaisquer porém que fossem seus escrúpulos, ele carecia desse dinheiro, e julgava-se com direito de empregá-lo em serviço de tamanho alcance, como era aquele a que o destinava, salva mais tarde a restituição da quantia por um meio indireto, para descargo desses escrúpulos de consciência.
Tomada esta resolução, sobreveio-lhe um receio acerca da cautela passada pelo negociante como capitalista da empresa. Não recordava-se de ter visto o papel desde muito tempo, talvez três anos. Onde andaria? Na queima que fizera em vésperas de casar-se, teria sido poupada essa inutilidade?
Grande importância devia Seixas ligar a esse negócio, pois estando já a trabalhar na repartição, interrompeu sua rigorosa assiduidade. Meteu-se em um tílburi, e correu a casa, esperando achar-se de volta em uma hora.