A ELLA.
Na taça onde cuidei sorver doçuras,
Libei por mãos da ingrata, o fel da morte!…
João de Lemos.
I.
Sois bella na verdade, mas quanto é falso
Vosso olhar, vosso gesto e coração!
Porque de amôr fazeis nutrir esp’ranças
Quando a ninguem amaes? — Porque dolosa
Fingis dôce sorrir, — meiga soltaes
Essa voz, cujos sons me vibram na alma?!
Que destino cruel em vós fadou,
Com taes encantos, alma já sem brilho!
Oh! — Porque assim, a mascara infernal
Com que tanta torpeza encobrieis,
Tão cedo ante mim a arremessastes? —
— Os extremos d’amôr que não sentistes,
As juras vãs que nunca me guardastes,
E que os vossos labios gota a gota
Sobre o meu coração cair fizeram,
Hoje em desprezo e odio se tornaram!
— Perfida! Quão fallaz, traidora heis sido
Para quem tanto amôr vos outorgára!!
— Olvidae o passado, eu vo-lo rogo,
E agora attenta ouvi, do crime vosso,
Sua negra relação, seu fim nefasto! —
Inspirae-me, ó minha lyra,
Minha lyra, meu primôr,
Sem ti faleço, valei-me,
Valei-me na minha dôr!
Afinae, ó lyra, a corda,
Que diga ingratidão,
Tangendo-a, quero cantar
Do mundo a maior traição!
II.
Qual lympha dos bosques suas agoas correndo,
Tão brandas, tão puras no seu murmurar,
Assim minha vida em seu mago arrebol,
Ditosa fruia venturas sem — par.
Qual flôr expontanea que á beira dos rios
Nasceo, e não teme que a venham ceifar,
Assim minha vida, em seu mago arrebol,
Ditosa fruia venturas sem — par.
Fruia ditosa no seio fagueiro
De Virgens mui santas, de Mãi carinhosa,
A vida scismada de magas delicias,
A vida do mundo a mais primorosa.
Seus labios floriam o riso dos Anjos,
No peito echoando os philtros d’amôr,
D’amôr sacrosanto, por Deos inspirado,
D’amôr que não mente, de Deos Creador!
Que doce fallar escutava a minh’alma,
Sorvendo de um trago seus santos preceitos!
Que doce magia vibrava na voz,
Pintando do mundo seus torpes defeitos!
Cuidava então viver n’um céu de rosas,
Isento dos espinhos roedores,
Do flagicio infernal do mundo ingrato,
Que pungem n’alma, qu’o peito ralam!
— Ah! que doce viver então vivi! —
De pesares immune, julgava ainda,
Descrendo das perfidias embusteiras,
Que as negras páginas do Livro eterno
Marcavam em lettras d’oiro a minha vida
Só fagueiro porvir se me antolhando!
— Pávido sonho! —
E um dia, em que pensava ainda fruir
Esses gosos da vida tão do céu,
Qu’extasiavam de prazer minh’alma,
Um rosto eu vi, qual outro igual não vira,
De mimos, e d’encantos primorosos,
Que ferindo minh’alma, cri julgei,
Bem louco na verdade — se um Anjo! —
Ereis vós, sim Senhora, em quem meus olhos
Ávidos do prazer d’então gosar
Do brilho que nos vossos scintillava,
Sorveram longos tragos desse encanto,
Arroubo dos sentidos, — doce enlevo,
Mago transporte que nascer fizestes
Ao Trovador ingenuo, inexp’riente!
— Do extasis em qu’absorto contemplava
Os olhos vossos, vossa tez mimosa,
Com vôo d’anjo, em amôr tornou-se
O que até então era só culto! —
Amei com amôr do Céu
Amei com amôr do inferno,
E se houvera amôr eterno,
Esse amôr seria meu!
Meu peito sentio
Com casto pudor,
As lavas d’amôr,
Qu’as faces tingiu,
Com leve rubôr.
Vi logo nascer,
Com almo prazer,
Em sonhos doirados,
Por Deos offertados,
A vida scismada,
Por vôs inspirada!
Gosava apenas desse amôr fagueiro,
Que tão puro ante mim dissimulaveis,
Com os embustes de mulher sem pejo,
Qu’em troco d’ouro vil rende á infamia
O seu pudôr, a sua vida e honra, —
Quando em tão curto espaço novo amôr,
No peito refalsado acalentado,
Ao outro vossas juras fementidas
Do coração votaveis!…
Mas não! Emmudecer, a mim compete,
Tão negros crimes em tão tenra idade!!…
Calla, ó Bardo, a tua lyra,
Embora tão dissonante;
Nem siquer seus roucos sons
Merece uma inconstante.
Deverias só cantar
Almos gôzos de primôr;
Não vibres na tua lyra
Os cantos do desamôr!
Rio de Janeiro 22 de Fevereiro de 1849.