Dizia Oliveira Martins que o condão das bellas obras era relerem-se indefinidamente. Ha treze annos que se publicou a primeira edição do Cancioneiro Chinez. Desde então a poesia, sobretudo no mundo latino, passou pela mais vertiginosa e estranha evolução, resvalando da noble ordonnance parnasiana até a anarchia quasi chaotica do decadismo, do symbolismo, do instrumentismo, do amorphismo e d'outras phantasias prosodicas e metricas. E, todavia, a segunda edição d'esse livro, eminentemente artistico, nada mais faz do que renovar em quem o lê a sensação de graça lyrica, de finura conceptual, de impecavel belleza plastica, que fez o successo d'essa admiravel e feliz adaptação do lyrismo chinez á nossa lingua.
O trabalho de Antonio Feijó conseguindo, atravez das versões francezas, tão maravilhosa transposição, sem estiolar a frescura emotiva do original, é um dos mais bellos esforços d'arte e de gosto que a poesia portugueza do fim do seculo passado tentou e realizou. Com a maestria d'um habilissimo artifice da palavra, com a paciencia meticulosa d'um beneditino do verso, elle trabalhou, limou, burilou essas pequenas e graciosas joias, onde nos engastes da phrase perfeita scintillam as gemmas da emoção lyrica. E como se não cingiu ás formulas inconstantes da moda litteraria, como, em vez de martellar n'um molde o plaqué d'uma rethorica falsa, lavrou o seu pensamento no oiro puro do verbo classico, a sua obra não envelheceu, não desbotou, nada perdeu do seu brilho primitivo, e hoje, como ha treze annos, fulgura com o inextinguivel esplendor do talento.
É difficil apreciar bem uma versão, quando se não conhece a lingua original da obra vertida. Mas mais difficil se torna ainda o fazel-o, quando as duas linguas são tão dessimilhantes, de familias tão diversas, de estrutura phonetica e até graphica tão differentes como são a nossa e a chineza. Comtudo, se puzermos em confronto esses lindos poemazinhos e as traduções da eminente sinologa, madame Judith Gautier, que verteu os originaes chinezes para prosa franceza, fica-se surprehendido com a exactidão, a fidelidade, o respeito meticuloso do texto, a que Antonio Feijó se adstringiu no seu conscienciosissimo trabalho. Não é d'elle que se poderá dizer: traduttore, traditore. Se os poemas chinezes são o que a erudita filha do grande Théo nos revelou nas bellas paginas do Livro de Jade, póde afoitamente dizer-se que o Cancioneiro de Antonio Feijó é a mais irreprehensivel e leal das traducções.
Mas abstraiamos d'este ponto de vista. Supponhamos que Antonio Feijó não buscou nos poetas chinezes mais do que motivos lyricos, para sobre elles ensaiar variações ou glosas. Supponhamos que o Cancioneiro não é uma traducção, nem uma adaptação, mas a obra de um poeta europeu, finamente perfumada de orientalismo. Nem por isso a sua belleza seria menor, nem por isso seriam menos admiraveis os versos purissimos d'essa purissima obra d'arte. O auctor teria, neste caso, affirmado mais poderosamente as suas faculdades de poeta e de artista, porque seria um semi-creador. E o Cancioneiro, reduzido a uma imitação, não diminuiria de valor sob o ponto de vista litterario.
Portanto, traducção, adaptação ou imitação, esse bello livro é, de qualquer forma, uma obra superior. As excepcionais faculdades poeticas de Antonio Feijó, a sua ponderação, o seu gosto, a luminosidade e elegancia do seu verbo, o seu poder de linha e de colorido, a sua technica admiravel e conscienciosa, patenteiam-se n'elle de uma maneira brilhante, impoem-se triumphantemente á nossa admiração. O Cancioneiro Chinez marca em Antonio Feijó a plena affirmação da sua individalidade de artista — d'esta individualidade, que já as Transfigurações, um tanto frias nas suas linhas esculpturaes, e as Lyricas e Bucolicas, mais vivas e emocionadas e não menos bellas como forma, annunciavam promettedoramente. Do Cancioneiro Chinez á Ilha dos Amores havia apenas um passo a dar. Antonio Feijó deu-o com raro brilho — e tornou-se um poeta consagrado, um verdadeiro mestre do verso.
O Cancioneiro, além do Portico, que abre com a exotica decoração e as sentenciosas inscripções de uma entrada de Pagode, foi accrescentado com O sacrificio de Gu-So-Gol, um canto soberbo de epopeia barbara. Neste trecho Feijó como que põe mais uma corda na sua lyra — a corda epica. O quadro d'esse sacrificio heroico é, realmente, grande e nobre. A flauta de yade, que modulava as docuras idyllicas ou elegiacas do Leque, Flôr Vermelha, Casa no Coração, Batel das Flores, Esposa Honesta, cede a vez á turba estridente que clangora as sublimidades do heroismo. Os versos resoam bronzeos, metallicos, como um ruido de armas. O seu rythmo alonga-se, ergue-se, empola-se, como uma vaga que o sopro da tempestade entumesce. E em todo esse bello episodio uma forte crispação tragica passa, fazendo-nos vibrar de um confuso sentimento, mixto de terror e enthusiasmo epico.
- Jornal da Noite, de 14 de Agosto de 1909.
Luiz de Magalhães.