Temos desde hontem o novo livro de versos de Antonio Feijó — Ilha dos Amores, saido, ha dias, dos prelos da Imprensa Nacional, e editado pela casa M. Gomes, de Lisbôa. Evidentemente que, por muito menos fadigosa que a nossa vida fôsse, nos seria absolutamente impossivel avaliar em conjunto, dentro de tão breve espaço, a obra de um artista litterario da nobre categoria a que pertence A. Feijó. Vai isto, assim, apenas como registo de recepção e de vivo agradecimento, envoltamente com algumas ligeiras notas da impressão que recebemos de uma rapida leitura.
Essa impressão é magnifica. O talento de A. Feijó amplificou-se notavelmente em emoção, em fantasia, em profundeza de alma; o poeta alongou os seus passos e a sua visão pelo mundo, e á nostalgia da sua bella mocidade, não muito longinqua, ainda, se lhe foi juntar a do seu patrio Minho, tão distante do país scandinavo e, ao mesmo tempo, tão brutalmente contrastado pela noite e pela neve d'essa tristissima região polar. E é um encanto de observação o jogo d'esta dupla mágoa, d'este complicado pungir, deliciosissimo, de que provêm as estancias da Ilha dos Amores. Numa reacção vigorosa de fisiologia e de alma, assim como os seus olhos se ensanguentaram naquella immensa noite, assim tambem, naquella tristeza inexoravel, o coração do poeta se dilatou de saudades, e a estetica do glorioso parnasiano antigo emoveu-se intensamente e vibrou fundo; todas as nervuras do marmore sagrado se desmineralizaram em veias e em arterias e uma onda rubra e fumegante circulou e palpitou por todas ellas.
De resto, em todos os versos que já lemos do novo livro, é o mesmo estilo magnificente das producções de outr'ora, mas dexterisado com um maravilhoso, consummado bom-gosto; é essa mesma amplitude harmoniosissima e limpidez diamantina, o admiravel senso musical, a riqueza larga de fantasia, e aquella fidalga probidade artistica, o esmero, a esplendida perfeição de executante, que fizeram de Antonio Feijó um dos mais elevados representantes da nossa poesia contemporanea.
Em remate, da Ilha dos Amores, trasladamos para a valla do noticiario esta divina lirica:
Na tua bôca macerada
Por tantos beijos mercenarios que soffreste,
Meu labio achou ainda a candura sagrada
Que da avidez das outras bôcas escondeste...
E no teu peito exhausto, onde em tumulto ouviste
Tantas paixões rolar,
A minh'alma escutou, num eco amargo e triste,
A primeira innocencia em segredo a chorar!
A chorar em segredo a pureza da infancia,
A candura perdida,
De que eu sentia ainda a ultima fragrancia
A evolar-se de ti, como d'urna partida.
Pobre flôr torturada! O teu doce perfume
Foi delicia e veneno...
Pairava o teu Amor como num alto cume:
Só podia attingi-lo o meu beijo sereno!
Todo o teu ser vibrou como uma flor ao vento,
Tremeu, desfalleceu...
E a tua alma, esquecendo o seu longo tormento,
Num sorriso de gloria á tua bôca ascendeu!
Vinha cheia de graça e candura ineffavel,
D'innocencia e de pejo,
Que eu fiquei a scismar se esse beijo insondavel
Seria porventura o teu primeiro beijo!...
Primeiro de Janeiro, de 28 de Maio de 1897.
Ilha dos amores, por Antonio Feijó. Um vol. 114 pag. in 8º, Lisbôa, Editor M. Gomes 1897.
Produz-se, ao lermos os versos d'este poeta, o desejo de simplesmente os irmos transcrevendo todos; e nessas condições limitarmos a apreciação a simples interjecções. Ninguem hoje, em Portugal, cinzela assim tão primorosamente a lingua portugueza em metro e rima, e a obra litteraria sae nitida, brilhante, completa, — sem que alguem note a fadiga do obreiro, ou adivinhe os processos de factura. O artista confunde-se com o dilettante, e é inconfundivel a linha de cada um d'elles.
Reproduzo esses dezesseis versos, — e ponho ponto na prosa:
Oh Musa Antiga, d'olhos placidos, rasgados etc.
Noites de Vigilia. N.º 16.
Silva Pinto.