Por fins de outubro de 1877, — pouco falta para a conta d'um longo meio seculo! — em Coimbra, um bando alegre de novatos de Direito, no intervallo de duas aulas, subia ruidosamente a ingreme escada da torre da Universidade, e, lá do alto, n'um largo desafogo, estendia a vista por esse incomparavel panorama do valle do Mondego, entre cujo legendario quadro lhes ia correr todo um lustro de intensa vida mental, de tremendas controversias de ideias, de extases poeticos, de sonhos de juventude, de esperanças, de chimeras, — essa divina florescencia do espirito, que marca, na nossa existencia, o seu momento superiormente bello e culminantemente feliz.

Eu era d'esse grupo. Mal nos conheciamos de vista uns aos outros: havia apenas coisa d'uma semana que, pela primeira vez, nos juntaramos nos bancos da nossa aula. Vinhamos de todas as provincias de Portugal: como acontecia sempre nos grandes cursos de Direito, havia, entre nós, minhotos, transmontanos, beirões, extremenhos, alemtejanos, algarvios, ilheus, — cada um com o seu typo ethnico, o seu sotaque regional. Ao acaso, misturavamo-nos, entabolavamos conversas superficiaes, trocavamos impressões rapidas, no deslumbramento d'essa visão de belleza que se estendia, deante dos nossos olhos, da montanha á planicie, da mancha azulada e longinqua da serra da Louzã á ridente campina do Mondego, tocada já pelos tons d'oiro do outomno.

N'essa casual communicabilidade, achei-me a conversar com um rapaz, ao lado do qual havia feito a esfalfante escalada da torre. Era um bello moço, de hombros largos e um tanto cheio de corpo, cabello ligeiramente aloirado, pelle clara e uns olhos castanhos sorridentes e um nada maliciosos, atravez dos quaes como que se lhe via a clara intelligencia e o vivo espirito.

Dissemos meia duzia de coisas vagas sobre a paisagem, sobre Coimbra, sobre os interessantes aspectos da velha Universidade, vista assim do alto, no conjuncto irregular dos seus corpos assymetricos. Facilmente nos descobrimos inclinações litterarias, citámos livros, fallámos de escriptores, de poetas... E, d'esse encontro fortuito, d'esse momento inolvidavel d'uma forte emoção de esthesia, partilhada por duas almas apenas sahidas da adolescencia, nasceu, entre mim e Antonio Feijó, uma amizade de irmãos, uma camaradagem de espirito, uma estreita communhão moral, que, sem sombras, nem collapsos, mesmo através de longos afastamentos, durou quarenta annos e só a Morte, — só ella, a implacavel ceifeira das minhas grandes amizades! — logrou cortar...

Pouco depois, já no decorrer do primeiro anno do seu curso, Feijó revelava-se um poeta á sua geração academica.

Lembro-me perfeitamente dos primeiros versos que, d'elle, li. Appareceram na Sebenta da cadeira de Direito Romano. As Sebentas, por esse tempo, juntavam, ás vezes, á utilidade das suas funcções pedagogicas, o innocente deleite d'uma ou d'outra perpetração litteraria, em que ensaiavam as azas aquelles, do Curso, a quem a Musa já provocava e seduzia...

Um condiscipulo nosso, o bom João Martins, de Redondo, havia, n'uma lição, estadeado uma vasta sabedoria, citando Ortolan com abundante facundia.

Dois dias depois, a Sebenta inseria, em appendice, este soneto anonymo:

Quando o Martins deita falla
Sobre o Foral de Leão,
Palpitam de commoção
Todos os cantos da sala.

Em saber ninguem o eguala!
Merece uma distincção
Quem refuta San Simão
E o positivismo abala;

Quem leva ao fundo chaótico
Do Codigo Wizigothico
A branca luz da manhã,

E, sendo um poço de sciencia,
Nos prova que, em descendencia,
É bisneto de Ortolan!


Esta leve boutade satyrica, d'uma factura correcta, bem versificada, bem rimada, revelando uma facil e fina veia humoristica, fez successo. O auctor escondera-se. Mas, dias depois, alguem o descobriu. Era Feijó.

Não tardou muito que o seu nome passasse a ser conhecido nas rodas litterarias de Coimbra. Já em Braga, onde fizera os preparatorios e onde então João Penha, esse perfeito versificador, doutor «a quem as Musas não fizeram mal», era venerado, e com justiça, como um mestre, — já em Braga Feijó havia publicado, nas secções litterarias dos jornaes da terra, algumas composições que denunciavam as suas notaveis disposições poeticas. Era mais um poeta que o norte do paiz mandava a esse Parnaso de Coimbra, onde, á falta d'uma Faculdade de Lettras, a doce paisagem, os melancholicos olivedos do Penedo da Saudade, o encanto do Mondego, com os seus pallidos renques de salgueiros, os seus laranjaes todos floridos e rescendentes nas noites de maio, com os seus orpheons de milhares de rouxinoes, com os seus luares de sonho que tudo espiritualisam, e, sobre isto, a tradição dos grandes poetas que, desde Camões e o bom Sá, por alli passaram, iniciavam as almas novas nas emoções do lyrismo, desde a graça bucolica do idylio ou da egloga á saudosa plangencia da elegia.

A geração academica, que, por esse tempo, floria em Coimbra, está, póde dizer-se, na derradeira phase da sua declinação, vae a apagar-se de todo no crepusculo do seu occaso. Talvez metade d'ella se tenha sumido já na voragem da morte. E, dos que restam, muitos viram já passada a sua hora, aquella em que a sua personalidade plenamente se revelou no campo de acção para onde as suas faculdades os levaram. A successão das gerações parece vertiginosa a quem observa a diluição d'aquella a que pertenceu nas sombras do tumulo ou no silencio do esquecimento...

E, comtudo, essa geração não foi inteiramente infecunda em individualidades de accentuado valor. D'ella sahiram homens publicos que longo tempo occuparam o tablado politico, homens de lettras que marcaram na vida litteraria do seu tempo, homens de sciencia, professores abalisados, causidicos illustres, artistas notaveis, — e até soldados heroicos e gloriosos, porque, entre os nomes dos que mais vieram a illustral-a, se conta o de Mousinho d'Albuquerque. Foi a geração que celebrou, entre magnificas festas litterarias e artisticas, o Centenario de Camões. Foi a geração que veio a exercer a sua influencia na vida nacional na passagem do seculo XIX para o seculo XX.

Seria uma diversão descabida e longa o tentar agora julgal-a nos seus merecimentos e defeitos, o procurar fixar as caracteristicas do seu espirito e criticar as suas idéas e a sua acção. Mas póde dizer-se que foi uma geração culta, uma geração activa sem impulsivos nervosismos revolucionarios, uma geração intellectualmente equilibrada e até disciplinada, uma geração que começou a romper com as formulas doutrinarias e a vêr com senso critico os problemas philosophicos, as questões politicas e as theses estheticas. D'isto lhe proveio, talvez, aquella pontasinha de scepticismo intellectual que, até certo ponto, lhe contaminou a vontade. Esta faculdade precisa do apoio da convicção e da fé para não fraquejar na suas funcções directivas da acção humana.

Litterariamente, ella produziu, sobretudo, poetas. Jayme de Magalhães Lima e Trindade Coelho foram dos seus poucos prosadores. O verso teve mais quem o cultivasse. E alguns d'esses cultores fizeram-n'o notavelmente, como Feijó, Coelho de Carvalho, Silva Gayo, Luiz Osorio, Queiroz Ribeiro, Alfredo da Cunha, para citar apenas os que persistiram no officio e, pela publicação das suas obras, se cathegorisam escriptores, por assim dizer, profissionaes.

Por esse tempo, as influencias dominantes estavam n'um momento de transição. Passava-se do romantismo grandiloquente e hyperbolico de Hugo, da apaixonada e vehemente sensibilidade de Musset, do satanismo artificial e elegante de Baudelaire para a arte plastica, esculptural e rutilante do parnasianismo, de que eram corypheus illustres Gautier, o parfait magicien ès lettres, Bainville, o virtuose do verso, o correcto e delicado Coppée, o solemne e marmoreo Leconte de Lisle, e Sully Prud'homme, e Dierx, e Heredia, o inimitavel cinzelador e esmaltador, cujos sonetos, ainda não colligidos nos esplendidos Trophées, nos appareciam, uma ou outra vez, nas revistas litterarias francezas.

Dos nossos, admirava-se, enthusiasticamente, João de Deus, Anthero, Junqueiro, Gomes Leal e apreciava-se com deleite Penha e Gonçalves Crespo, — todos esses que haviam sido os mestres das gerações anteriores.

O espirito de Feijó vasou-se n'estes moldes e reflectiu as phases d'essa evolução do gosto litterario. Mas, com o tempo, a sua individualidade caracterizou-se, marcou n'um forte relevo o seu perfil. A sua emoção avivou-se e afinou-se. A sua technica apurou-se, desenvolveu recursos excepcionaes. E assim se foi formando, de livro em livro, essa alta figura litteraria, — uma pura e nobre figura de artista, consciencioso até á meticulosidade no exercicio da sua arte, um mestre do verso e um mestre da lingua, que, na sua obra, pouco volumosa, mas de indiscutivel superioridade — pauca sed bona — deixou indelevelmente marcada a grandeza do seu talento.