Foi pelas floras concestrativas de uma noite tropical de verão, numa dessas noites em que o espírito se debate e anseia na infinita vertigem das profundas e sombrias cogitações, alanceado por amarguras incomparáveis; numa noite em que desfalecimentos supremos me assediavam, que a minha visão ficou sonambulamente deslumbrada por este espantoso e imaginoso espetáculo da Lua.
Todo o azulado espaço estrelara já, fina e aristocraticamente.
Na floreada constelação da Via-Láctea, na vasta, solene e celeste, alta Nave dos Astros, alvas cintilações pompeavam, rútilos fagulhamentos, faustosas chamas claras sideralmente acesas, palpitação de harmonias, de formas, de brancuras imaculadas.
Como que diamantinas cordas tensibilizadas de harpas miraculosas afinavam sonoramente de ritmos inefáveis a solidão sagrada, eucarística, da noite; e como que também vinham desfilando, descendo lentas e letárgicas pelos fios etéreos das estrelas, alas e alas fulgentes de querubins e arcanjos revestidos das pratarias, da translucidez, da névoa vaporosa da Via-Láctea.
E eu sentia leves, doces rumorejos de asas que afiavam, girando num torvelinho, num redemoinho branco de plumagens suaves...
Mas, nas sutis vibrações ignotas do Éter, errava certa sensibilidade, o dolorimento secreto de imperceptíveis nervos delicados de freira histérica, dilacerada nos infinitos êxtases do misticismo alucinado, dos intensos refinamentos, dos requintes esquisitos das macerações.
Parecia que nas esparsas correntes do ar a dor circulava, cristalizada, filtrada na tenuidade vaga da luz...
As transparências luminosas da noite tinham altos silêncios augustos de sacrários, fazendo meditar e sonhar...
E toda a amplidão das Estrelas era de uma solenidade e majestade muda.
Através de brumas diáfanas, como através de uma paisagem de nevoeiros polares, vinha lentamente vogando, vogando, lassa, leve, como numa atmosfera aquosa, a angustiada aparição da estupenda lua, imensa, mole e mórbida, untuosa, magnetizadora Flor de filtros letais, Odalisca Fabulosa do opulento Mar-Sultão, derramando uma paz branca, morna, claridade viscosa nas vastidões em torno.
Do modo por que eu a via, por que eu a estava sentindo na imaginação e na visão, a lua parecia crescer, crescer, ir avolumando cada vez mais e, à proporção que avolumava, ir adelgaçando, adelgaçando, frouxa e oleosamente, numa forma glutinosa e elástica de estranho Verme sulfúreo rastejando em preguiçosas, felinas ondulações e enchendo, avassalando todo o espaço com a sua redonda auréola luminosa e langue...
E então todo o firmamento ficava invadido por essa maravilhosa face da lua, que velava completamente as estrelas.
E era só uma ampla lua que formava o espaço inteiro, era só aquela face fria, branca, que dominava de fosforescência toda a vastidão do horizonte.
Mas essa mesma face fria como que depois se transfigurava ainda; certos aspectos, os caracteres, as linhas, o contorno breve que lhe dá a semelhança de uma máscara de múmia, as manchas e sombras que por vezes turvam a ebúrnea candidez do seu palejante clarão, subitamente desapareciam, se desfaziam; e ela, a lua espectral, a lua frígida, cadavérica, começava a experimentar a sensação de um ser, a viver a vida de uma alma...
Pouco e pouco se acentuavam linhas, traços, aspectos, iam aparecendo novas formas intensas, que acusavam já a contornação de um vulto destacado nos amplos céus, gerado da face lívida da lua.
Imensa dolência e imensa tristeza, transfundidas na asiática beleza judaica de Rabino erradio e sacrossanto, como que envolviam numa bruma ideal de paixão essa magoada e cismadora figura.
E era, afinal, agora, pela metamorfose da luz, todo o busto sereno, a face dolorosa do Cristo, como que surgindo num grande e profundo soluço mudo.
Era a face do Cristo, aparecendo nos sudários do Infinito, ciliciada no meio de esplendores sidéreos, com a imaginativa cabeça enxameada de curiosos e fascinadores apólogos, coroada de epodos, inflamada dos segredos ardentes e voluptuosos do Cristianismo!
E essa cabeça legendária, de triste e de patética doçura, de emotiva palidez romântica, avultava, avultava mais, num relevo fundo, como se se quisesse corporificar e mover, abrindo desmesuradamente os olhos cheios de mistérios incomparáveis e fazendo ondular no ar a espessa cabeleira enovelada, derramada em longos caracóis flavescentes pelas espáduas divinas...
E eu olhava, absorto, para o surpreendente espetáculo da lua, assim sagradamente transfigurada!!
Ah! e como a branda face de Jesus sorria agora para mim com magoado sorriso de piedade; como esse sorriso me acarinhava, derramava perdões e clemências, do alto, sobre a minh'alma terrena! Um sorriso da mais bem-aventurada bondade, da ternura mais celeste, um sorriso infinito que abrangia toda a amplidão e se confundia com a claridade dormente da noite.
E era bem para mim esse sorriso, porque ele me atraía, me magnetizava com o seu vaporoso fluido, radiando como esmaecida, lívida madrugada, na boca sensual e roxa pelo fel da agonia, boca contorcida no derradeiro espasmo, do Cristo peregrino, no Cristo errante lacerado de chagas...
Com esse enternecido e perdoador sorriso eu me sentia lavado de todos os soturnos e rudes males, via-me purificado de tudo, vivendo nas primitivas essências imaculadas do Bem.
Ao mesmo tempo parecia que aquele prodigioso sorriso se transformava num gesto de mão poderosa, onipotente, mas, contudo, mansa, que me afagava meigamente a vertiginada cabeça, com doçura, com ternura, com amor, acordando em mim indefinidos estados d'alma, células que adormeciam há muito os seus desencontrados pensamentos e arrebatando alucinadamente todo o meu ser não sei para que estranhos mistérios e fenômenos da sensação...
E eu, abstraído, enlevado, gozava com volúpia, sob aquela mão divinal e terna que me acarinhava, que me mergulhava, quase adormecido, em branduras inefáveis de tufos de sedas alvas, de linhos repousantes, de veludosidades, de arminhos consoladores.
E dizia comigo, mentalmente:
— Sim! Tu és, afinal, o meu Deus, bom e justo, Todo poderoso, o Unigênito, que te sorris para mim abençoando-me e protegendo-me contra o Mal com o teu sempiterno perdão! Eu me humilho à tua Onisciência e à tua Graça, porque eu pensava sempre que te haveria de encontrar um dia, uma hora, um momento, bom e justo, dando-me o alívio extremo! Oh! és tu! és tu! que eu reconheço bem! És tu o louro Deus profético e apaixonado das saudosas terras da Ásia!
Oh! és tu! és tu! Bem te reconheço, pela majestade das transcendentes misericórdias que semeias e pelas ciliciantes grinaldas de sonhos que te circundam a aflitiva, desolada cabeça...
Tanto clamei, tanto bradei por ti nas solidões, que tu afinal apareceste para me salvar do fundo desta geena onde em vão me debato e rojo. Do fundo desta geena que me devora, apertando-me nos seus cem mil círculos de ferro.
Sim! vens consolar-me de tudo na atroz geena do Mundo, vens suavizar-me estes áridos dias de pedra em que até mesmo o sol é para mim a pedra mais indiferente de todas as pedras.
Vens trazer-me justiça, Deus sempiterno — justiça, a quem vive sequioso por ela; justiça, a quem vive de agonias por ela; justiça, a quem combate e depreca no mundo por causa dela.
Se eu aqui me desalento e desolo perante a tua Imagem não é que eu duvide da tua suprema demência nem da tua suprema justiça! Não é porque eu julgue a justiça uma palavra inútil, convencional, vã, perfeito engodo doirado para iludir as almas crédulas, para favorecer os potentados e punir os humildes! Não é! Não!
Mas, um dia, já um visionário do Infinito, um desses errantes do Ideal, com uns olhos espiritualizados de tísico, contou-me que lá no seu país bárbaro, uma vez que ele quis justiça, que ele clamou por justiça, responderam-lhe com esta espada fria de sarcasmo:
— Ah! tu queres justiça, vais ter justiça. Metam este diabo numa jaula, derretam-lhe os pés em azeite a ferver, arranquem-lhe a pele a ferro em brasa e arranquem-lhe a língua pelas costas, se é que ele, na verdade, quer justiça, da pura e boa justiça, da imparcial, da generosa justiça!
Tu, Deus excelso, sim, tu não iludes ninguém, tu vens trazer-me justiça, eu bem creio, eu creio muito, porque o sorriso inefável que abre essa original aurora nos teus lábios não pode iludir nunca, não pode enganar jamais.
E mesmo os mais descrentes, os mais céticos e pessimistas acreditariam, se vissem! como eu agora vejo nesse teu piedoso sorriso tão carinhosamente iluminado da mais incomparável irradiação de justiça...
Sim! vens trazer-me justiça! vens trazer-me justiça!
Parecia mesmo, então, que para como que afirmar ainda mais os meus amargurados pensamentos, um pranto imenso, diluvial, me inundava, caindo do alto; que o Cristo chorava, chorava, num monótono choro soluçante que eu escutava pungido e enternecidamente agradecido a Ele por tanto e tanto compreender e sentir assim a minha Dor e assim chorar por mim...
Mas, de repente, como por uma transmutação de mágica, tive um fundo sobressalto; do meio daquela espécie de torpor fui violentamente sacudido por uma impressão de deslumbramento, e, então, vi! estupefato, que aqueles divinos lábios lívidos a pouco e pouco se satanizavam e enrubesciam, passava sobre eles um relâmpago de fogo; aquela boca martirizada afinal abria-se estranhamente rubra, estranhamente rubra! — e desvairadas gargalhadas vermelhas estalaram e rolaram retumbantemente pelo espaço a fora como atroantes excomunhões...
E as estrepitosas risadas rolaram ríspidas, cortadas sangrentamente de sarcasmos e ensangüentando e abalando todo o espaço, como risadas de um novo Cristo satânico, despenhado e rebelde na eterna confusão dos séculos...
Toda aquela face de celeste ternura desaparecera, a doce expressão piedosa daqueles olhos se exilara para longe e apenas então ficara o mais duro e feroz semblante, com a apocalíptica expressão sagrada e selvagem do Arcanjo titânico dos Extermínios agitando no ar o gládio fulminante.
E a boca rubra dessa face tremenda ria, bruta, grosseiramente como os Getas da Trácia, bárbaras, empedernidas risadas d'escárnio que rolavam, rolavam pela noite a dentro, de eco em eco, com o clangor monstruoso de turbilhões, de cerradas massas de sons de trombetas conclamantes ou formidáveis e pesados carros de batalha, fantástica e atropeladamente arremessados através dos bíblicos, profundos e tenebrosos despenhadeiros de Josafá!