...posses non meus esse liber
(OVÍDIO)


Ainda romance!

Com alguma exclamação, nesse teor, hás de ser naturalmente acolhido, pobre livrinho, desde já te previno.

Não faltará quem te acuse de filho de certa musa industrial, que nesse dizer tão novo, por aí anda a fabricar romances e dramas aos feixes.

Musa industrial no Brasil!

Se já houve deidade mitológica, é sem dúvida essa de que tive primeira notícia, lendo um artigo bibliográfico.

Não consta que alguém já vivesse nesta abençoada terra do produto de obras literárias. E nosso atraso provém disso mesmo, e não daquilo que se vai desacreditando de antemão.

Quando as letras forem entre nós uma profissão, talentos que hoje apenas aí buscam passatempo ao espírito, convergirão para tão nobre esfera suas poderosas faculdades.

É nesse tempo que hão de aparecer os verdadeiros intuitos literários; e não hoje em dia, quando o espírito, reclamado pelas preocupações da vida positiva, mal pode, em horas minguadas, babujar na literatura.

Então com certeza se não há de buscar o crítico literário, entre os abegões do bezerro de ouro, que passaram a vida a cevá-lo, e com isso cuidam lá no seu bestunto que se fizeram barões da imprensa.

Ingrato país que é este. Ao homem laborioso, que sobrepujando as contrariedades e dissabores, esforça por abrir caminho ao futuro, ou o abatem pela indiferença mal encetou a jornada, ou se ele alcançou, não a meta, mas um pouso adiantado, o motejam, apelidando-lhe a musa de industrial!

Dá-te por advertido pos, livrinho; e, se não queres incorrer na pecha, passando por um produto de fábrica, já sabes o meio. É não caíres no goto da pouca gente que lê, e deixares-te ficar bem sossegado, gravemente envolto em uma crosta de pó, à espera do dente da traça ou da mão do taberneiro que te há de transformar em cartucho para embrulhar cominhos.

Também encontrarás algum crítico moralista que te receba de sobrolho franzido, somente ao ver-te no rosto o dístico fatal!

Se já anunciaram às tubas que o romance desacredita quem o escreve! De minha parte perguntarás ao ilustrado crítico em quais rodas, ou círculos, como ele as chamou portuguesmente, se não consente que penetre o romance.

Tenho muito empenho em saber disso para fugir o mais longe que possa dessa latitude social. Deve de haver aí tal bafio de mofo, que pode sufocar o espírito não atreito à pieguice.

Os críticos, deixa-me prevenir-te, são uma casta de gente, que tem a seu cargo desdizer de tudo neste mundo. O dogma da seita é a contrariedade. Como os antigos sofistas, e os reitores da Meia Idade, seus avoengos, deleitam-se em negar a verdade.

Ao meio-dia contestam o sol; à meia-noite impugnam a escuridão. Como Heráclito, choram quando o mundo ri, ou zombam com Demócrito quando a sociedade se lamenta. Dão-se ares de senado romano, com o afã de levantar uns e abaixar outros: — parcere subjectis et debellare superbos, como disse Virgílio.

Assim, livrinho, um, ao receber-te, talvez se lembre de teres saído de uma cachola, que na véspera não se descobriu amavelmente à sua passagem e não lhe catou a devida cortesia.

Estoutro te há de acolher com soberbo gesto de enfado, aborrecido como anda de dar notícia de tantos livros de um e mesmo autor. É prudente cortar as asas ao ambicioso para que não tome conta das letras e faça monopólio do público.

Haverá ainda quem, fiel ao preceito jurídico — do ut des, te dispense o remoque ou o elogio à medida do que lhe tiver cabido; e neste ponto, coitadinho, tens muito que sofrer, pois bem sabes tu quanto é parco teu autor de fofos encômios, arranjados com epítetos que soam como as teclas de um piano.

E efetivamente outra cousa não é o instrumento de um crítico senão um piano, a menos que para alguns não degenere a cousa em cravo ou espineta. As teclas não correspondem a notas de música, mas a uns certos adjetivos, tão sovados, que já soam a marimba.

Outros críticos te esmagarão com augusto e tenebroso silêncio, verbis facundior, crentes de que te condenam à perpétua obscuridade, não dando sequer a notícia de teu aparecimento, como quem dele nem se apercebe.

Lembra-me quando era criança, ter visto um menino muito afadigado em esconder o sol com a mão, para deixar o mundo em trevas. Queria por capricho fazer meia-noite do meio-dia que era.

Não te enchas aí de presunção, livrinho, pensando que te comparo ao astro rei. Não; a imagem dele é a opinião, a publicidade, a qual apesar das anteparas das gazetas, te avistará na tua humildade, como o sol aquece o mesquinho inseto escondido na relva.

Aos amigos, como Joaquim Serra, Salvador de Mendonça, Luís Guimarães e outros benévolos camaradas, tu lhes dirás, livrinho, que te poupem a qualquer elogio.

Para a crítica têm eles toda a liberdade, nem carecem que lha deem; mas no que toca a louvor, pede encarecidamente que se abstenham.

Tenho cá minhas razões; não te quero mira e alvo das iras que os encômios costumam levantar. Há certos adjetivos tão perigosos que importam quase uma excomunhão — latae sententiae.

Também, para dizer toda a verdade, os gabos e aplausos já andam tão corriqueiros, que parece mais invejável a sorte do livro, que merece de um escritor sisudo a crítica severa, do que a de tantos outros que aí surgem, cheios de guizos de cascavéis, como arlequins em carnaval.

É para aquela crítica sisuda que te quero eu preparar com meu conselho, livrinho, ensinando-te como te hás de defender das censuras que te aguardam.

Versarão estas, se me não engano, principalmente sobre dois pontos, teu peso e tua cor. Achar-te-ão com certeza muito leve, e demais, arrebicado à estrangeira, o que em termos técnicos de crítica vem a significar – “obra de pequeno cabedal, descuidada, sem intuito literária, nem originalidade”.

Ora pois não te envergonhes por isto. És o livro de teu tempo, o próprio filho deste século enxacoco e mazorral, que tudo aferventa a vapor, seja poesia, arte, ou ciência.

Nada mais absurdo do que esperar-se do autor um livro maduramente pensado e corrigido conforme o preceito horaciano — multa dies et multa littura coercuit — para atirá-lo na voragem, donde sai todo esse borralho do combustível, que impele o trem do mundo.

Quantas cousas esplêndidas brotam hoje, modas, bailes, livros, jornais, óperas, painéis, primores de toda a casta, que amanhã já são pó ou cisco?

Em um tempo em que não mais se pode ler, pois o ímpeto da vida mal consente folhear o livro, que à noite deixou de ser novidade e caiu da voga; no meio desse turbilhão que nos arrasta, que vinha fazer uma obra séria e refletida?

Perca pois a crítica esse costume em que está de exigir, em cada romance que lhe dão, um poema. Autor que o fizesse, carecia de curador, como um prodígio que seria, e esbanjador de seus cabedais.

Não se prepara um banquete para viajantes de caminho de ferro, que almoçam a minuto, de relógio na mão, entre dois guinchos da locomotiva.

Os livros de agora nascem como flores de estufa, ou alface de canteiro; guarda-se a inspiração de molho, como se usa com a semente; em precisando, é plantá-la, e sai a cousa, romance ou drama.

Tudo reduz-se a uma pequena operação química, por meio da qual suprime-se o tempo, e obriga-se a criação a pular, como qualquer acrobata. Diziam outrora os sábios: — naturà non facit saltus; mas a sabedoria moderna tem o mais profundo desprezo por essa natureza lerda, que ainda cria pelo antigo sistema, com o sol e a chuva.

Se isto que aí fica é verdade nos que fazem profissão de fabricar livros, dobrada razão têm para não improvisarem modelos e primores aqueles que aproveitam apenas umas aparas de tempo em rabiscar algum chocho volume, como outros em desenhar uma aquarela.

É o meu caso. Estes volumes são folhetins avulsos, histórias contadas ao correr da pena, sem cerimônia, nem pretensões, na intimidade com que trato o meu velho público, amigo de longos anos e leitor indulgente, que apesar de todas as intrigas que lhe andam a fazer de mim, tem seu fraco por estas sensaborias.

A razão deste fraco, não é senão capricho; o povo, como os reis, estão no direito e uso de os ter. Estes fazem ministros de qualquer bípede, e já o houve, que fez senador um quadrúpede. Aquele não lhes fica a dever; e, se a história não mente, fez um rei de uma mulher, e chamou-o Maria Teresa.

A suma de tudo isto vem a ser que, se alguém porventura incomoda-se com estes volumes, o modo de livrar-se da praga não é decerto a serrazina de crítica, para a qual o autor há muito, por força da consoante, fez orelhas moucas. Há meio mais seguro e bem simples.

Persuadam ao leitor que não vá à livraria à cata destes volumes. Em isto acontecendo, já o editor não os pedirá ao autor, que por certo não se metera a abelhudo em escrevê-los. Assim todos lucramos. O literato que não terá agasturas de nervos com a notícia de mais um livro; o crítico que salva-se da obrigação de alambicar um centésimo restilo de seu absíntio literário; o leitor que poupa o seu dinheiro; e finalmente o autor, que livre e bem curado da obsessão literária, poderá sonhar com a riqueza, desde que fizer da sua pena um côvado, um tira-linhas, uma enxada, ou mesmo um estilete a vintém o pingo.

Que fortuna para teu autor, livrinho, se lhe tirassem esta querida ilusão literária, como já lhe arrancaram o outro puro entusiasmo da política: essas duas cordas da pátria, essa gêmea aspiração do belo e do grande, que afagava-lhe os sonhos da mocidade e tocava-os de luz esplêndida.

Tornar-se-ia homem positivo, sabendo o valor ao tempo, medindo as palavras a peso, como fazem os grandes fornecedores desse gênero, tão consumido nos arsenais do governo. Arranjaria um pequeno monopólio; montava-se num milhar de contos; e esperava tranquilo e sereno o baronato, que é a canonização dos bem-aventurados neste reino do paraíso terrestre.

Quanto ao segundo defeito que te hão de notar, de ires um tanto desbotado do matiz brasileiro, sem aquele picante sabor da terra: provém isso de uma completa ilusão dos críticos a respeito da literatura nacional.

Eis uma grande questão, que por aí anda mui intrincada e de todo ponto desnorteada, apesar de tão simples e fácil que é. Lá uns gênios em Portugal, compadecendo-se de nossa penúria, tomaram a si decidir o pleito, e decretaram que não temos, nem podemos ter literatura brasileira.

A grande inteligência de Alexandre Herculano nos profetizara uma nacionalidade original, transfusão de duas naturezas, a lusa e a americana, o sangue e a luz. Mas os ditadores não o consentem; que se há de fazer? Resignemo-nos. Este grande império, a quem a Providência rasga infindos horizontes, é uma nação oca; não tem poesia nativa, nem perfume seu; há de contentar-se com a manjerona, apesar de ali estarem recendendo na balsa a baunilha, o cacto e o sassafrás.

Os oráculos de cá, esses querem que tenhamos uma literatura nossa; mas é aquela que existia em Portugal antes da descoberta do Brasil. Nosso português deve ser ainda mais cerrado, do que usam atualmente nossos irmãos de além-mar; e sobretudo cumpre erriçá-lo de hh e çç, para dar-lhe o aspecto de uma mata virgem.

Bem vês, livrinho, que uma questão desta monta não é para o teu modesto topete, e sim para algum prólogo campanudo, obra de bom punho. Muito farás se te defenderes dos críticos; e é só no que penso agora.

Aos que tomam ao sério estas futilidades de patriotismo, e professam a nacionalidade como uma religião, a esses hás de murmurar baixinho ao ouvido, que te não escutem praguentos, estas reflexões:

“A literatura nacional que outra cousa é senão a alma da pátria, que transmigrou para este solo virgem com uma raça ilustre, aqui impregnou-se da seiva americana desta terra que lhe serviu de regaço; e cada dia se enriquece ao contacto de outros povos e ao influxo da civilização?”

O período orgânico desta literatura conta já três fases.

A primitiva, que se pode chamar aborígine, são as lendas e mitos da terra selvagem e conquistada; são as tradições que embalaram a infância do povo, e ele escutava como o filho a quem a mãe acalenta no berço com as canções da pátria, que abandonou.

Iracema pertence a essa literatura primitiva, cheia de santidade e enlevo, para aqueles que veneram na terra da pátria a mãe fecunda — alma mater, e não enxergam nela apenas o chão onde pisam.

O segundo período é histórico: representa o consórcio do povo invasor com a terra americana, que dele recebia a cultura, e lhe retribuía nos eflúvios de sua natureza virgem e nas reverberações de um solo esplêndido.

Ao conchego desta pujante criação, a têmpera se apura, toma alas a fantasia, a linguagem se impregna de módulos mais suaves; formam-se outros costumes, e uma existência nova, pautada por diverso clima, vai surgindo.

É a gestação lenta do povo americano, que devia sair da estirpe lusa, para continuar no novo mundo as gloriosas tradições de seu progenitor. Esse período colonial terminou com a independência.

A ele pertencem o Guarani e as Minas de Prata. Há aí muita e boa messe a colher para o nosso romance histórico; mas não exótico e raquítico como se propôs a ensiná-lo, a nós beócios, um escritor português.

A terceira fase, a infância de nossa literatura, começada com a independência política, ainda não terminou; espera escritores que lhe deem os últimos traços e formem o verdadeiro gosto nacional, fazendo calar as pretensões hoje tão acesas, de nos recolonizarem pela alma e pelo coração, já que não o podem pelo braço.

Neste período a poesia brasileira, embora balbuciante ainda, ressoa, não já somente nos rumores da brisa e nos ecos da floresta, senão também nas singelas cantigas do povo e nos íntimos serões da família.

Onde não se propaga com rapidez a luz da civilização, que de repente cambia a cor local, encontra-se ainda em sua pureza original, sem mescla, esse viver singelo de nossos pais, tradições, costumes e linguagem, com um sainete todo brasileiro. Há, não somente no país, como nas grandes cidades, até mesmo na corte, desses recantos, que guardam intacto, ou quase, o passado.

O Tronco do Ipê, o Til e o Gaúcho, vieram dali; embora, no primeiro sobretudo, se note já, devido à proximidade da corte e à data mais recente, a influência da nova cidade, que de dia em dia se modifica e se repassa do espírito forasteiro.

Nos grandes focos, especialmente na corte, a sociedade tem a fisionomia indecisa, vaga e múltipla, tão natural à idade da adolescência. É o efeito da transição que se opera; e também do amálgama de elementos diversos.

A importação contínua de ideias e costumes estranhos, que dia por dia nos trazem todos os povos do mundo, devem por força de comover uma sociedade nascente, naturalmente inclinada a receber o influxo de mais adiantada civilização.

Os povos têm, na virilidade, um eu próprio, que resiste ao prurido da imitação; por isso na Europa, sem embargo da influência que sucessivamente exerceram algumas nações, destacam-se ali os caracteres bem acentuados de cada raça e de cada família.

Não assim os povos não feitos; estes tendem como a criança ao arremedo; copiam tudo, aceitam o bom e o mau, o belo e o ridículo, para formarem o amálgama indigesto, limo de que deve sair mais tarde uma individualidade robusta.

Palheta, onde o pintor deita laivos de cores diferentes, que juntas e mescladas entre si, dão uma nova tinta de tons mais delicados, tal é a nossa sociedade atualmente. Notam-se aí, através do gênio brasileiro, umas vezes embebendo-se dele, outras invadindo-o, traços de várias nacionalidades adventícias; é a inglesa, a italiana, a espanhola, a americana, porém especialmente a portuguesa e francesa, que todas flutuam, e a pouco e pouco vão diluindo-se para infundir-se n'alma da pátria adotiva, e formar a nova e grande nacionalidade brasileira.

Desta luta entre o espírito conterrâneo e a invasão estrangeira, são reflexos Lucíola, Diva, A Pata da Gazela, e tu, livrinho, que aí vais correr mundo com o rótulo de Sonhos d'Ouro.

Tachar estes livros de confeição estrangeira, é, relevem os críticos, não conhecer a fisionomia da sociedade fluminense, que aí está a faceirar-se pelas salas e ruas com atavios parisienses, falando a algemia universal, que é a língua do progresso, jargão erriçado de termos franceses, ingleses, italianos e agora também alemães.

Como se há de tirar a fotografa desta sociedade, sem lhe copiar as feições? Querem os tais arqueólogos literários, que se deite sobre a realidade uma crosta de classismo, como se faz com os monumentos e os quadros para dar-lhes o tom e o merecimento do antigo?

Chame-se à partida de sarau; à recepção, de agasalho; ao leão, de janota ou casquilho; aos salões, de casas de boa companhia; à pecadora, de rameira; à reunião, de assembleia; aos círculos, de roda, et sic de coetera.

Em vez de andarem assim a tasquinhar com dente de traça nos folhetinistas do romance, da comédia, ou do jornal, por causa dos neologismos de palavra e de frase, que vão introduzindo os novos costumes, deviam os críticos darem-se a outro mister mais útil, e era o de joeirar o trigo do joio, censurando o mau, como seja o arremedo grosseiro, mas aplaudindo a aclimatação da flor mimosa, embora planta exótica, trazida de remota plaga.

Sobretudo compreendam os críticos a missão dos poetas, escritores e artistas, nesse período especial e ambíguo da formação de uma nacionalidade. São estes os operários incumbidos de polir o talhe e as feições da individualidade que se vai esboçando no viver do povo. Palavra que inventa a multidão, inovação que adota o uso, caprichos que surgem no espírito do idiota inspirado: tudo isto lança o poeta no seu cadinho, para escoimá-lo das fezes que porventura lhe ficaram do chão onde esteve, e apurar o ouro fino.

E de quanta valia não é o modesto serviço de desbastar o idioma novo das impurezas que lhe ficaram na refusão do idioma velho com outras línguas? Ele prepara a matéria, bronze ou mármore, para os grandes escultores da palavra que erigem os monumentos literários da pátria.

Nas literaturas-mães, Homero foi precedido pelos rapsodos, Ossian pelos bardos, Dante pelos trovadores.

Nas literaturas derivadas, de segunda formação, Virgílio e Horácio tiveram por precursores Ênio e Lucrécio; Shakespeare e Mílton vieram depois de Surrey e Thomas Moore; Corneille, Racine e Molière depois de Malherbe e Ronsard; Cervantes, Ercilla e Lope de Vega depois de Gonzalo de Berceo, Iñigo Mendoza e outros.

Assim foi por toda a parte; assim há de ser no Brasil. Vamos pois, nós, os obreiros da fancaria, desbravando o campo, embora apupados pelos literatos de rabicho. Tempo virá em que surjam os grandes escritores para imprimir em nossa poesia o cunho do gênio brasileiro, e arrancando-lhe os andrajos coloniais de que andam por aí a vestir a bela estátua americana, a mostrem ao mundo, em sua majestosa nudez: naked majesty.

E agora, livrinho, só resta escrever-te o faciebat que os escultores antigos costumavam gravar no soco das estátuas, ao contrário de Arquelau que lhe substituiu o pretensioso fecit.

Aquele remate, se neles foi modéstia, para mim é uma confissão. As páginas que aí andam com o meu nome, já o disse uma vez, e o repito, nada mais são do que provas tipográficas, a corrigir, para a tiragem.

E não pensem os críticos, que é isso escusa para atenuar a severidade. Bem ao contrário, achasse eu um meio de a estimular, que decerto o empregaria.

Quem mais ganha com esses rigores sou eu. Se provêm do bom gosto e da cultura literária, são lições judiciosas, que se recebem, e mais tarde aproveitam. Se nascem da inveja, do despeito, do desejo de celebrizar-se, ou de qualquer outro lodo interior, onde se gere essa praga, ainda assim tem serventia: revelam ao autor o apreço do público, pelo desprezo a que são lançadas essas alicantinas.

Portanto, ilustres e não ilustres representantes da crítica, não se constranjam. Censurem, piquem, ou calem-se, como lhes aprouver. Não alcançarão jamais que eu escreva neste meu Brasil cousa que pareça vinda em conserva lá da outra banda, como a fruta que nos mandam em lata.

Tinha bem que ver, se eu desse ao carioca, esse parisiense americano, esse ateniense dos trópicos, uma paródia insulsa dos costumes portugueses, que entre nós saturam-se de dia em dia do gênio francês. A aurea scintilla da raça latina, que a família gaulesa herdou da romana, tem de a transmitir a nós, família brasileira, futuro chefe dessa raça.

A manga, da primeira vez que a prova, acha-lhe o estrangeiro gosto de terebintina; depois de habituado, regala-se com o sabor delicioso. Assim acontece com os poucos livros realmente brasileiros: o paladar português sente neles um travo; mas se aqui vivem conosco, sob o mesmo clima, atraídos pelos costumes da família e da pátria irmãs, logo ressoam docemente aos ouvidos lusos os nossos idiotismos brasileiros, que dantes lhes destoavam a ponto de os ter em conta de senões.

E como não há de ser assim, quando a esposa que lhes balbucia as ternas confidências do amor feliz, e depois os lindos filhinhos que enchem a casa de rumor e alegria, lhes ensinam todos os dias em suas carícias essa linguagem, que, se não é clássica, tersa e castiça, é a linguagem do coração, da felicidade, da terra irmã e hospedeira.

É preciso concluir, para que o faciebat não se torne moto-contínuo; e como desejo dar a este proêmio um ar de gravidade que lhe supra a leveza do miolo, terminarei apresentando aos doutores em filologia a seguinte e importantíssima questão, que espero ver magistralmente debatida.

Estando provado pelas mais sábias e profundas investigações começadas por Jacob Grimm, e ultimamente desenvolvidas por Max Müller, a respeito da apofonia, que a transformação mecânica das línguas se opera pela modificação dos órgãos da fala, pergunto eu, e não se riam, que é mui séria a questão:

O povo que chupa o caju, a manga, o cambucá e a jabuticaba, pode falar uma língua com igual pronúncia e o mesmo espírito do povo que sorve o figo, a pera, o damasco e a nêspera?


Sênio.

23 de julho de 1872.