Havia grande banquete no palacete do Soares, à praia de Botafogo.

Era dia de anos. Guida entrava nos dezenove: o que anunciava para breve um grande acontecimento.

Sabia-se que o pai prometera deixar à filha toda a liberdade para se divertir até dezoito anos com a condição de casar-se logo depois. Chegado o dia, Guida sofismou a promessa, declarando que se deviam entender os anos completos: pois até a véspera de fazer dezenove, ela se considerava na casa dos dezoito.

— É assim que nós as moças contamos os anos, disse ela para o pai.

O pai condescendera, e a época do grande acontecimento foi prorrogada até o dia em que fizesse os dezenove anos.

Esta circunstância produzia nos convidados certa emoção como se a moça tivesse de fixar naquele dia a sua escolha.

Quando a curiosidade excitava tais abalos, imagine-se do que não sentiriam os pretendentes, receando ver de repente se desmoronar o edifício de suas fagueiras esperanças.

Corria o mês de abril.

Uma semana antes deixara a família do Soares a Tijuca, e voltara à sua residência habitual de Botafogo, onde com a passagem para o inverno já não havia a temer os grandes calores.

Não se esquecera Guida de convidar Fábio, que tinha continuado a frequentar a casa; e nessa ocasião pediu-lhe transmitisse o convite a Ricardo, porque este não voltara à Tijuca desde o passeio à Vista Chinesa.

— Ele está mal conosco? disse a moça a rir.

— Era preciso que fosse um herege, D. Guidinha.

— Pois então peça-lhe que não falte.

— Prometo trazê-lo.

Os salões enchiam-se de convidados; mas eram em geral parentes, íntimos e pessoas de pouca cerimônia, com quem o Soares não se constrangia. A festa aristocrática, à qual concorria todo o alto coturno fluminense, era o baile à noite.

Fábio acabava de entrar e aproximou-se para cumprimentar Guida.

— Seu amigo? perguntou-lhe a menina.

— Não veio, murmurou o mancebo.

No rosto gentil da filha do banqueiro pintou-se uma faceira expressão de desdém e enfado.

— Eu não devia apresentar-me aqui sem uma certidão de óbito em devida forma, acudiu Fábio em tom galhofeiro; mas ainda creio que me seria mais fácil trazer o sujeito a modo de convidado de pedra do que em carne e osso.

— Ele terá suas razões, disse a moça com indiferença.

— O que ele tem é uma sem-razão, tornou Fábio no mesmo tom.

No jantar achou-se Fábio colocado à esquerda de D. Guilhermina, como de costume. Havia entre os dois um arrufo, que já durava alguns dias.

— Sinto me tivessem reservado este lugar, que outrora era minha ambição, disse o mancebo com sentimento.

— E que hoje lhe aborrece! tornou D. Guilhermina.

— É verdade; pela certeza que tenho de a estar incomodando.

— Engana-se!

— Tem razão; uma criatura de todo indiferente não pode incomodar aqueles que nem se apercebem de sua presença.

— O senhor é muito injusto! murmurou a moça com inflexão queixosa.

— Que direi eu? será justo roubar a alma e a vida de um homem, e não conceder-lhe sequer a mínima consolação?

— Uma entrevista, só, à noite, no jardim... Se eu me prestasse a esse capricho, o senhor havia de ser o primeiro a reprovar consigo mesmo essa imprudência e a condenar-me.

— Para que fingir, D. Guilhermina? A causa, eu a conheço! Está defronte de nós!

E o olhar do moço fitou-se no Lima, sócio do conselheiro.

— Então o senhor pensa?...

— Eu não penso. É o que se ouve por toda a parte; é o que diz todo o mundo, tornou Fábio.

— Assim, o senhor também acredita?... balbuciou D. Guilhermina com lágrimas na voz.

O mancebo, comovido, receou que o soluço rompesse do seio opresso da moça.

— D. Guilhermina! exclamou com voz submissa e suplicante. Podem reparar!

— Que mal faz!... Para eles, como para o senhor, não sou uma... desgraçada?

— Para mim!

— Não confessou que também crê no que se diz por toda a parte?

— É diferente!... Pode-se ter uma afeição...

— Mas é falso!

— Assegura-me?

— Juro!

— Em vez do juramento, dê uma prova.

— Qual deseja?

— A que eu lhe pedi.

D. Guilhermina hesitou.

— Quer me perder em vez de salvar-me? disse a senhora com a voz repassada de tristeza.

— Não quero prova alguma; acredito, atalhou Fábio.

Acabado o jantar, quando os convidados derramaram-se pela sala do bilhar e jardim, Fábio encontrou-se com Guida:

— O senhor há de me dizer uma cousa.

— Muitas e com o maior prazer.

— Que razão é essa pela qual o Dr. Nunes deixou de frequentar a nossa casa?

— Pois há uma razão?

— O senhor disse-me quando chegou.

— Perdão, D. Guidinha; se bem me lembro, eu disse que havia uma “sem-razão”.

— Ou isso! tornou Guida a rir.

— É muito diferente.

— E essa sem-razão não se pode saber?

— Guarda segredo?

— Inviolável.

— Eu desconfio que é o Visconde da Aljuba.

— Como? exclamou Guida na maior surpresa.

Ela não compreendia de que modo pudesse o usurário arredar a Ricardo de sua casa.

— Aí está o enigma!

— Brigou com o visconde?

— Não; briga não houve. Apenas Ricardo enxotou-o do escritório.

Guida aplaudiu com riso franco.

— Mas por quê?

— Decifre. Não lhe disse que é um enigma?

— Vamos a ver.

— O tal visconde é um especulador terrível. De tudo faz negócio. Nascimentos e óbitos, casamentos e divórcio, heranças e dotes, nada lhe escapa. Não foi debalde que ele começou por belchior! Pois o homem parece que lembrou-se de propor um dos seus “negocinhos” a Ricardo...

— Ah!...

— Paulistas, a senhora sabe como são desconfiados. Ricardo não quis ouvi-lo; mas como o homem valeu-se de seu nome... disse Fábio hesitando.

— Acabe! instou Guida com autoridade.

— Está acabado. Ricardo apanhou-o pela gola e sacudiu-o na rua, como se faz com uma barata, para não sujar as mãos.

— Creio que já decifrei. Mas vou pensar ainda, respondeu Guida com um sorriso, onde borbulhava o desprezo pela infâmia do usurário.

— Não me comprometa!

— Esteja descansado.

O Soares conversava no terraço com o Conselheiro Barros, o Barão do Saí, o Visconde da Aljuba, Nogueira e outros.

— Papai, escute!

Soares afastou-se com a filha.

— Hoje é dia de meus anos, creio que não se esqueceu?

— Tu terias o cuidado de lembrar-me?

— Entretanto ainda não me deu o presente de anos!

— Ah! E esta pulseira de esmeraldas que aí tens no braço? Aposto que nem imaginas quanto custou no Farani? Eu tenho vergonha de confessar! Cinco... Não digas que foram contos... Cinco histórias...

— Isto foi presente do banqueiro; e o pai?

— Nada de espertezas!... Eu cá sou um só; a obra não tem dois volumes. Por conseguinte deixa essa rabulice para o fisco, que reparte um homem em vários inquilinos para cobrar-lhes diversos impostos pessoais.

— Neste caso, aqui tem sua pulseira, disse Guida calcando a mola do bracelete para tirá-lo. De meu papai eu quero amor e não dinheiro.

— Bem! O que tu queres é pedir-me alguma cousa, e estás com estes rodeios. O que é?

— Faz?

— Se não for um impossível.

— Não deixe que o visconde venha à nossa casa.

— Por quê?

— Insultou-me!

— Que fez ele, Guida?

— Especulou com meu nome.

— Como sabes?

— É meu segredo.

— Tens certeza?

— Toda.

Um instante depois o Soares traçando o braço ao visconde levou-o até o quarto dos chapéus, e disse-lhe:

— Visconde, você sabe o provérbio: “Duro com duro não faz bom muro.” Nós somos dois espertalhões; não podemos embaçar-nos um ao outro; portanto cada um seu rumo. Aqui está seu chapéu.

— Isto quer dizer que me despede?

— É conforme a maneira de entender. Sou eu quem se despede de suas relações. Boa-noite.

Meia hora depois Fábio tornava à casa onde ia preparar-se para o baile.

Ao passar pela Rua da Ajuda, lembrou-se o moço de alguma cousa, que o fez retroceder o espaço de dois ou três edifícios, e penetrar em um corredor escuro. No fim havia uma escada, que chegada ao tope no primeiro andar, voltava para cima.

Subindo a correr os dois lanços, achou-se em um sótão baixo e pequeno, composto de duas peças, uma das quais abria para a escada. Estava apenas cerrada a porta; não foi preciso bater.

Ricardo escrevia à luz de uma lamparina de querosene.

Uma semana havia que Ricardo se instalara em sua nova habitação. A fortuna lhe enviara um sorriso, bem escasso ainda, que não obstante luziu como aurora na sombria perspectiva de sua existência.

Conseguira ao cabo de muita paciência a tradução de um folhetim, que lhe deixava uns setenta mil-réis por mês; e tivera uns dois processos policiais que, pagos mesquinhamente, lhe tinham metido no bolso uma nota de duzentos. Finalmente, procurando um cômodo, achara na Rua da Ajuda aquela metade de sótão mobiliado, a trinta mil-réis por mês incluída a comida; mas a dona da casa, uma senhora viúva, vendo que tratava com pessoa instruída, propôs-lhe como pagamento ensinar suas três meninas e dois rapazes; o que Ricardo prontamente aceitou.

Fábio opôs-se à mudança, na ideia de que o amigo fosse levado pelo receio de ser pesado; mas Ricardo demonstrou-lhe que daquele modo promovia seus interesses. Além de não custar-lhe o cômodo nada, senão trabalho, gênero de que tinha boa provisão, podia entre os conhecidos da viúva obter novos discípulos.

— E te sujeitas a isso? perguntara-lhe Fábio admirado.

— O trabalho honesto honra; e esse de ensinar é dos mais nobres, respondera simplesmente o paulista.

No momento em que entrava o amigo, Ricardo escrevia à sua mãe, e confirmava-lhe as boas notícias que até então apenas lhe deixara entrever, receoso de afagá-la com falaz esperança.

— Trabalhando sempre! disse o trêfego fluminense recostando-se na marquesa de vinhático.

— Estou escrevendo para São Paulo, respondeu Ricardo com uma inflexão triste na voz.

— Oh! diabo!... É verdade, amanhã sai o vapor. Espera!...

De um salto chegou-se à mesa, tomou uma pena, e escreveu no primeiro bocado de papel que achou, estas palavras:

La vita uniti
Transcorreremo.


— Toma; mete isso em tua carta!

E acendendo o charuto, voltou à marquesa, onde espichou-se cantarolando o dueto da Traviata. Passado um instante ergueu-se; olhou indeciso para Ricardo que lhe dava as costas escrevendo; passeou a esmo pelo estreito aposento, e aproximou-se da mesa:

— Queres um charuto?... É fazenda superfina!... Duque!... Já vês que para fumá-los é preciso ser príncipe pelo menos. Mas o Soares, que trata este mundo de resto, abarrota com eles aquela súcia acostumada ao trabuco de vintém! Fazia dó ver como atolavam as mãos nas bandejas de prata dourada!... Toma, não queres provar?

— Deita-o aí, respondeu Ricardo metendo a carta na capa, e pondo-lhe o sobrescrito.

Secou-se a musa ao Fábio com aquela indiferença do amigo; deu outra vez algumas voltas pela casa, e afinal decidiu-se:

— Podes ouvir-me um instante?

— Acabada esta carta; é a de Luísa e Bela.

Fábio fez um trejeito de homem pilhado na esparrela.

— Podes falar.

— Sem preâmbulos. Queres fazer tua felicidade?

— Para isso trabalho eu há dez anos.

— Pois não é preciso mais trabalhar: basta que estendas a mão.

— Achaste a lâmpada de Aladino, e me queres fazer presente dela?

— Não; mas descobri que o anel da Guida que é mais precioso do que o de Giges, foi feito para teu dedo. Ah! assim me servisse ele!

— Já te pedi que não repitas esse gracejo.

— Não estou gracejando; falo sério, mais sério que a burra de bronze de teu futuro escritório. A Guida gosta de ti, acabei de convencer-me hoje.

— Não suspeites da pureza de uma menina sisuda, e com má intenção, disse Ricardo abrindo um livro para cortar a conversa.

— Assim recusas! Quando a riqueza e a felicidade te procuram e vêm tirar-te desta boceta que por uma metáfora atrevida e arriscada, como dizia o Padre Fidélis, chamam sótão, e onde vives empalado, tu a enxotas como uma importuna? E não te lembras de tua mãe, de tua irmã, dos teus, sobre quem se derramaria a tua felicidade como um benefício do céu?... És um egoísta, Ricardo!

Ricardo ergueu-se.

— É pena realmente que o anel não sirva em teu dedo, Fábio! Pois tu não hesitarias em sacrificar-te para a felicidade de todos nós, inclusive a de Luísa!

— Sem dúvida!

— Ao menos tens o mérito da franqueza, tornou Ricardo com ironia repassada de desgosto.

— Ora! Tu não me pareces um advogado da corte! Não há estudante de São Paulo que não saiba ao terceiro ano o que é um caso de força maior, e quais são os seus efeitos jurídicos. Pois, meu caro Ricardo, um dote de um milhão com a perspectiva de outro por herança, em matéria de amor não é só força maior, é uma fatalidade.

— Vejo que aproveitaste bem teu curso!

— Se eu que amo Luísa, e estou na obrigação de amá-la toda a vida, salvo o caso de força maior, a esquecesse para casar-me aí com qualquer outra moça, seria decerto um ingrato, um monstro de perfídia. Mas sendo para casar sem amor, por cálculo, com uma boneca do valor de um milhão, daria um exemplo sublime sacrificando a paixão aos ditames da razão. Os heróis da história e da fábula são todos feitos por esse modo. O coração fica intacto; e dentro dele, como a lâmpada do santuário, arde sempre o primeiro e eterno amor. Eis como eu penso.

— E Luisinha pensará do mesmo modo?

— Deve, porque me ama.

— A razão é original!

— Julgo-a por mim. Sabes que amo tua irmã. Pois bem; aparecesse um casamento milionário para ela, e eu seria o primeiro a dizer-lhe: “Luísa, eu não sou o nec plus ultra dos homens; mas um pobre mortal com algumas qualidades e muitos defeitos. Como eu, se encontram aí pelas ruas às dúzias. Um milionário porém, meu anjo, é uma espécie rara, um animal exótico, um fenômeno social; vale a pena dar a gente um molho de esperanças que afinal murcham como o alecrim, para ter o prazer de possuí-lo.”

— Não me admira essa linguagem da parte de um homem que ama à tua maneira.

— É outro ponto em que discordamos. Tu tens a fidelidade do frade, eu a do soldado; tu foges, eu combato. Quando um homem conta à mulher amada suas conquistas e as seduções que sacrificou à sua beleza, ela deve ter legítimo orgulho.

— Guarda o teu espírito para o baile, Fábio; não o estejas esperdiçando nesta cela, onde só cabem as tristezas e preocupações da vida. Melhor farias se me respondesses seriamente a uma pergunta.

Fábio calou-se surpreso da severidade do olhar de Ricardo.

— Donde te vem o dinheiro que despendes nesta vida de luxo?

— Ora! Uma ninharia!

— Vês; tu coras e evitas responder-me.

— Emprestaram-me.

— Quem?... Ela?

— Ricardo!... Que ideia fazes de mim?

— Desculpa-me!... Conheço teu caráter; mas no mundo em que andas agora, é tão fácil um deslumbramento, um eclipse!...

— Tens razão! Prometo abandonar semelhante vida... Irei ao baile desta noite porque estou obrigado.

— Vai e diverte-te, disse Ricardo, que desejava apagar no espírito do amigo o travo de sua injusta suspeita.

— Não queres vir também?

— Tenho muito que fazer.

E despediram-se.