No dia seguinte, às onze horas e meia, chegou Ricardo no Andaraí.

Achou na sala de visitas D. Leonarda recostada no sofá; Guida sentada a seus pés na almofada, desenhava à aquarela sobre uma mesinha de charão para divertir a avó; e Mrs. Trowshy fazia “frivolidade” (frivolité).

Guida estava triste.

A efusão de alegria que tivera na véspera ao ver Ricardo, quando já o sabia desobrigado da promessa que o separava dela, essa primeira expansão de sua alma desvanecera-se mais tarde, durante a vigília.

Como uma gota de fel, caiu-lhe do espírito no coração uma ideia, que a amargurou. O afã com que Ricardo aproximava-se dela, logo depois da decepção, e sem dar tempo à alma não já de esquecer, mas de acalmar-se, não estava revelando o plano de uma vingança ou de um cálculo sôfrego?

Esteve a não ir ao Andaraí; mas pensou que o melhor era não demorar essa crise de sua vida.

Viera; não com a alma cheia de enlevos e ternuras como a tinha na véspera quando tocava Romeu, porém no desencantamento de um coração que sente fanar-se ao morno bafo do aquilão, a primeira bonina, que apenas começava a florir.

Desculpou-se o advogado da demora na restituição dos papéis; elogiou a aquarela de Guida, o que levou a conversa para os desenhos de Ricardo e as recordações do verão passado na Tijuca. Falou-se da beleza das pitorescas montanhas, dos encantos de sítios tão aprazíveis; e uma doce tinta de saudade ressumbrava nessa conversa de passatempo.

Depois de um quarto de hora ou mais, vendo Ricardo que não havia mutação de cena, e perdendo a esperança de uma longa e íntima efusão, como ali tivera Guida com ele vinte dias antes, ergueu-se com intenção de sair.

— O senhor ainda não viu a chácara da avozinha? É muito bonita.

— Qual! disse a velha. Já foi, agora está maltratada.

— Quer dar um passeio? perguntou a moça.

— Com muito gosto! respondeu Ricardo.

— Vamos, Mrs. Trowshy.

A mestra estava pronta sempre para passear.

Querendo facilitar a Ricardo a entrevista, que ele desejava, e sentindo ao mesmo tempo vexame de achar-se de todo a sós com o mancebo, Guida escolhera o passeio, que lhe deixava toda liberdade de movimentos para dissimular as emoções e interromper a conversa a propósito.

O bando de moleques disparou adiante, como um rebanho de cabritos, quando o soltam do redil pela manhã, e espalhou-se pela chácara, a pretexto de apanhar frutas para a nhanhã Guida, mas realmente para as comerem eles e fazerem mil diabruras.

Mrs. Trowshy, que despedira da cancela pela rua afora, como bala de canhão, e lá se fora em passo de carabineiro inglês assaltando um reduto, depois de três voltas sentara-se esbaforida à sombra de uma jaqueira, a debulhar um cacho de uvas para refrescar-se.

Em frente da jaqueira passava uma rua de mangueiras, por onde vinham Guida e Ricardo a par, em um silêncio que os embaraçava a ambos; mas nenhum queria rompê-lo com banalidades, receando afastar o momento da confidência e talvez impedi-lo.

Animou-se Ricardo afinal:

— Lembra-se do que me disse aqui nesta casa, há quase um mês, quando nos despedimos? Que seu romance acabava alegre.

— É verdade! respondeu Guida. Eu disse e...

A moça conteve-se, receando lhe escapasse o segredo das lágrimas que tinham orvalhado seu amor ao nascer.

Ricardo esperou um instante, mas vendo que o silêncio ia outra vez envolvê-los, continuou:

— Pois o meu acabou triste, bem triste.

— Conte-me, disse Guida com bondade.

— Não vale a pena. Uma afeição de infância, que lutou anos contra a adversidade para ser traída e ludibriada no momento em que lhe sorria a esperança! Quem dá valor a estas futilidades do coração? concluiu o mancebo em tom amargo.

— Compreendo quanto deve doer a perda de uma ilusão, observou a moça.

— Não é a perda de uma ilusão, mas a ruína de minha vida inteira. O coração está morto; é uma terra sáfara onde não brotará nunca mais a flor de uma afeição. E é esta a maior felicidade que Deus me pode conceder ainda neste mundo!

Volveu Guida um olhar tímido e queixoso.

— Por quê?

— Amar outra vez? Seria martírio incessante. Não me animaria jamais a oferecer àquela a quem eu amasse os destroços de uma vida despedaçada pela traição, os sobejos de uma alma devorada pela dúvida. Oh! não! Se isso acontecesse por minha desgraça, eu havia de adorá-la em silêncio, no mais recôndito de minha consciência, quando não conseguisse arrancar do coração esse espinho doloroso.

Com a fronte inclinada e o seio palpitante, escutava Guida as palavras de Ricardo, que as proferia com o olhar vago, receando pousá-lo no semblante da moça. Timidamente observou:

— Não conheço os mistérios do coração. Mas penso que não pode haver maior júbilo do que seja esse de reviver um coração morto, de apagar um passado triste, e criar para aquele a quem se... estima, uma nova existência!

— Quantos encontram no mundo um anjo como esse? perguntou Ricardo.

Guida não respondeu.

— Quando recebi a carta, que deu o golpe à minha vida, a princípio não pude entender. Pensei estar louco. Li e reli; aquilo excedia minha compreensão. Enfim a certeza penetrou-me como um raio, e senti-me como arremessado do alto de um rochedo, que me dilacerara a alma. Reneguei tudo quanto respeitava; descri das cousas mais santas; cheguei a duvidar de minha mãe!... Era a vertigem; a dor veio depois, e atroz. Carecia de um coração amigo, com quem desabafasse. Aqui só tinha Fábio; mas com ele era profanar a minha desgraça. Lembrei-me da senhora. Talvez não devesse; mas acreditei que me havia de compreender.

— Não se enganou.

— E, não sei por que, tinha um pressentimento de que isso me havia de fazer bem: e fez. Estas poucas palavras que trocamos restituíram a calma a meu espírito. Sentia vacilar-me a razão a modo de ébrio; parecia-me que a consciência faltava-me, como a terra embaixo dos pés; e agora estou outra vez seguro de mim; perdi as ilusões e as crenças, mas conservo a possessão do eu; já não receio que uma paixão ou um vício me arrebate na correnteza como às alforrecas, que o mar lança à praia.

— Mostre-me a carta! murmurou Guida.

— Aqui a tem; eu a trouxe pensando que desejasse vê-la.

Recebeu Guida o papel com a mão trêmula, e procurou o abrigo de uma mangueira, cujo grosso tronco a escondia, para ler sem despertar a curiosidade da mestra. Ricardo voltou-se para não vexá-la.

Estava a moça comovida e palpitante. Aquele momento ia decidir de seu destino; e era preciso que ela tivesse ainda uma vez a energia de curvar a fortuna a seu império, e vencer ela mesma, de iniciativa própria, os obstáculos.

Sua alma superior compreendia agora o assomo confuso, obscuro, travado de hesitações e arrojos, que desde a véspera impelia Ricardo para ela, sôfrego de abrir-lhe o coração. O fenômeno que o mancebo não podia bem discernir em sua própria consciência, ela o penetrava com a luz pura de seu nobre coração.

Com as mãos apertadas ao seio para recalcar a efusão de seu júbilo, murmurou consigo:

— Ele me ama, sem o pensar. Quando viu-se livre, lembrou-se que nada o separava de mim. Mas eu sou rica e o mundo não acredita que se possa amar uma mísera criatura de carne, de preferência a uma barra de ouro!... Ricardo duvidou de si; ele mo disse há pouco; julgou-se arrastado para mim, não pelo afeto, mas pelo interesse. Então revoltando-se contra si mesmo, em vez de me dizer: — “Sou livre, aceito” — ao contrário, procura cavar um abismo que o separe para sempre de mim, a fim de não sucumbir à tentação. Não pode mais amar? Pertence à outra para sempre? Pois bem! Assim é que eu o quero, para afastá-lo tanto desse pesadelo, vivido sem mim, que não se lembre de ter jamais amado a outra mulher.

Estes pensamentos não os alinhou Guida em palavras na mente, mas desenhavam-se como figuras de painel iluminadas de repente por um jacto de luz. Também não duraram senão o tempo de abrir a carta de Bela, que a moça amarrotara entre as mãos, quando comprimira a arfagem do seio.

Leu Guida uma e duas vezes. Na segunda, sua mão caiu-lhe desfalecida. Compreendera tudo: divisara naquele papel mudo o pensamento de Bela como perscrutara pouco antes o segredo do advogado através de suas palavras confusas.

Dobrou a moça a carta enquanto se dominava e aproximou-se de Ricardo:

— Bela o ama, como eu pressinto que havia de amar, se Deus não me houvesse retirado sua graça.

— E esta carta?

— É uma sublime abnegação. Bela acreditou que era ela quem o condenava à pobreza e à obscuridade. Enganaram-na decerto, asseverando que o senhor tinha outra afeição; fez o que devia: renunciou à sua felicidade para não sacrificar aquele a quem ama.

Ricardo abriu a carta que a moça lhe restituíra, e leu-a de novo. Ali estava a alma de Bela, a santidade daquele coração em todo o esplendor. Fora preciso que a palavra pura e nobre de Guida lhe dissipasse a névoa dos olhos para que ele visse.

Erguendo os olhos, pousou-os brandamente no rosto de Guida.

— A senhora que lê no coração de Bela, inspire-me! Que devo fazer?

Guida voltou-se e colheu uma folha de avenca, nas fendas de um velho muro. Era um disfarce para ocultar o soluço que rompia-lhe o seio.

— O seu dever. Bela espera a resposta; é ela que vai decidir de sua sorte. Vá, vá a São Paulo e...

Pareceu que a voz de Guida afogava-se num soluço. Ricardo olhou, e viu-a sorrindo acabar a frase:

— E seja feliz!

A moça foi ter com Mrs. Trowshy e instantes depois, terminado o passeio, retirava-se Ricardo.

— Ela não pode amar-me!... pensou o moço em caminho para a cidade. E eu... eu tenho medo de amá-la!

Dois dias depois partia o vapor de Santos. Ir a São Paulo, como lhe dissera Guida, foi ideia em que não se demorou o ânimo do advogado; não o permitia o escritório, nem o estado de seu espírito. Resolveu porém escrever a Bela em termos que a demovessem da suspeita de não ser amada, como o fora sempre.

— Serei eu quem me sacrifique à sua felicidade.

No momento de pôr a pena no papel corou: nunca poderia escrever o que não sentisse; não falou a linguagem do coração, mas a da razão.


Bela.


A vida é uma cousa bem séria, que não se deve fazer tema de caprichos e arrufos.

Amamo-nos desde a infância, e juramos unir-nos para sempre. Pertencemo-nos pois um ao outro, e nada neste mundo a não ser a violência pode jamais separar-nos.

Vi em sua carta uma suspeita, que não devia demorar-se em seu espírito. Considero-me seu marido perante Deus; e conheço meu dever.

Adeus, etc.

Ricardo.


Esta carta fria e austera ainda mais confirmou Bela na convicção de que já não era amada como o fora outrora. Documento do nobre caráter de Ricardo, tinha a secura do pergaminho.

Contudo a moça não precipitou o desfecho do drama íntimo de sua vida, e deixou escoar-se o tempo, até que decorridos uns três meses e insistindo seu pai em favor do Felício, arrancou-lhe o consentimento para essa união.