Suspiros poéticos e saudades (1865)/Invocação ao Anjo da Poesia
Quando da noite o véo caliginoso
Do mundo me separa,
E da terra os limites encobrindo,
Vagar deixa minha alma no infinito,
Como um subtil vapor no aéreo espaço;
Uma angelica voz mysteriosa
Em torno de mim sôa,
Como o som de uma flauta harmoniosa,
Que em sagradas abóbadas rebôa.
Donde vem esta voz? — Não é de virgem,
Que ao prazo dado o bem amado aguarda,
E mavioso canto aos céos envia:
Esta voz tem mais grata melodia!
Donde vem esta voz? — Não é dos Anjos,
Que leves no ar adejam,
E com hymnos alegres se festejam,
Quando uma alma innocente
Deixa do barro a habitação escura,
E na siderea altura,
Como um astro fulgente
Penetra de Adonai o aposento;
A voz que escuto tem mais triste accento.
Como d’ara thurícrema se exalça
Nuvem de grato aroma que a circunda,
E lenta vai subindo
Em faxas ondeantes,
Nos ares espargindo
Particulas fragrantes,
E sóbe, e sóbe, até no céo perder-se,
Tal de mim esta voz parece erguer-se.
Sim, esta voz do peito meu se exhala!
Esta voz é minha alma que se espraia,
É minha alma que geme, e que murmura,
Como um orgam no templo solitario;
Minha alma, que o infinito só procura,
E em suspiros de amor a seu Deos se ala.
Como surdo até hoje
Fui eu á tão angélica harmonia?
Porventura minha alma muda esteve?
Ou foram porventura meus ouvidos
Até hoje rebeldes?
Perdoa-me, oh meu Deos, eu não sabía!
Eram Anjos do céo que lhe inspiravam,
E outras vozes meus labios modulavam.
Castas Virgens da Grécia,
Que os sacros bosques habitais do Pindo!
Oh Numes tão fagueiros,
Que o berço me embalastes
Com risos lisonjeiros,
Assas a infancia minha fascinastes.
Guardai os louros vossos,
Guardai-os, sim, qu'eu hoje os renuncio.
Adeus, ficções de Homero!
Deixai, deixai minha alma
Em seus novos delírios engolfar-se,
Sonhar co'as terras do seu pátrio Rio.
Só de suspiros coroar-me quero,
De saudades, de ramos de cipreste;
Só quero suspirar, gemer só quero,
E um cântico formar co'os meus suspiros;
Assim pela aura matinal vibrado
O Anemocórdio, ao ramo pendurado,
Em cada corda geme,
E a selva peja de harmonia estreme.
Já nova Musa
Meu canto inspira;
Não mais empunho
Profana lira.
Minha alma, imita
A Natureza;
Quem vencer pode
Sua beleza?
De dia, e noite
Louva o Senhor;
Canta os prodígios
Do Criador.
Tu não escutas
Esta harmonia,
Que ao trono excelso
A terra envia?
Tu não reparas
Como o mar geme,
Como entre as folhas
O vento freme?
Como a ave chora,
A ovelha muge,
O trovão brama,
O leão ruge?
Cada qual canta
Ao seu teor,
Mas louvam todos
O seu Autor.
Da grande orquestra
Aumente o brilho
O Canto humano
Da razão filho.
Minha alma, aprende,
Louva a teu Deus;
Os teus suspiros
Envia aos céus.
Oh como é belo o céu azul sem nódoa!
Que puro amor nos corações ateia,
Como a pupila de engraçada virgem,
Que serena nos olha, e nos enleia.
Mas que imagem sublime a mim se antolha,
Com largas asas brancas como o cisne,
E roçagante toga, que se ondeia
Como flocos de neve alabastrina!
Uma harpa de ouro em suas mãos sustenta!
Oh que voz suavíssima e divina!
Oh que voz, que as paixões n'alma adormenta!
Vem, oh Gênio do céu filho!
Vem, oh Anjo d'harmonia!
Cuja voz é mais suave,
Mais fragrante que a ambrosia!
Teu rosto vence em beleza
Ao sol no zênite luzente;
Teu largo manto é mais puro
Do que a lua alvinitente.
As asas, que te suspendem,
São mais ligeiras que o vento;
São mais terríveis que os raios,
Que giram no firmamento.
Tua fronte não se adorna
Com flores que o prado gera;
Sobre teus cabelos de ouro
Brilha de fogo uma esfera.
Teus pés a terra não tocam,
A teus pés a terra é dura;
Sobre aromas te equilibras
Recendentes de frescura.
O sol, a lua, as estrelas
São fanais que te iluminam,
São corpos a quem dás vida,
E ante teus passos se inclinam.
Os acordos de tua harpa
Todos os astros ecoam;
Reanima-se o Universo,
Quando as suas cordas soam.
Vem, oh Anjo, ungir meus lábios;
Traze-me uma harpa dos céus;
Ao som dela subir quero
Meus suspiros até Deus!
Quando no Oriente roxear a Aurora,
Como um purpúreo, auribordado manto,
Que ao Rei da luz o pavilhão decora,
E as saltitantes aves pelos ramos
Da madrugada o hino gorjearem,
Tua voz, oh minha alma, une a seu canto,
E as graças do Senhor cantando exora.
Quando a noite envolver a Natureza
Em tenebroso crepe; e sobre a terra
As asas desdobrar morno silêncio;
Nessas plácidas horas de repouso,
Em que tudo descansa, exceto o Oceano,
Que arqueja, e espuma em solitária praia,
Vizinhos ermos com seus ais pejando,
Como um preso que geme, e que debalde
Da prisão contra os muros se arremessa;
Tu também, como a lua, vigilante
Nessas propícias horas, oh minha alma,
Tua voz gemebunda exala, e une
À voz do Oceano, à voz d'ave noturna.
Enquanto estás sobre a terra,
Como no exílio o proscrito,
Canta como ele, que o canto
Refrigera o peito aflito.
Canta, que os Anjos te escutam,
E os Anjos à terra descem,
A escutar esses hinos,
Que para Deus almas tecem.
Canta a todos os momentos,
Canta co'a noite, e co'o dia;
E o teu derradeiro expiro
Seja ainda uma harmonia.