Sob a florescência casta e voluptuosa da lua, numa noite em que eu ia embebido num desses sonhos que nos transportam ainda mesmo acordados, deparei com um vulto de mulher, alta, esgalgada e lívida, vestida de negro e velada pela redoma vaporosa da bruma da lua...
Parecia trazer, como auréola extravagante, a nostalgia de ecos e rumores extintos...
O seu rosto branco, lactescente, na majestade do negror das vestes, tinha uma beleza augusta.
A fronte era como um ceú pálido e sereno para constelar de beijos soluçados de imprevista e suprema paixão.
Os cabelos, iriados d'orvalho luminoso, como que desprendiam certa fosforescência leve... Não eram louros, eram negros e de um oleoso quente, impressionante, fascinativo.
Os olhos chamejantes lembravam dois astros ardendo numa treva densa e ondulante, coruscando no abismo das duas órbitas fundas, fatidicamente embaladores como berceuses de um doce e delicioso Nirvana...
O nariz, ainda que belo e de uma aristocracia incriada, tinha uma expressão de ansiosas luxúrias de além-túmulo, um sentimento de austera firmeza e inexorabilidade de causar mistério e pavor...
A boca, de um langor quebrado e letal, de uma expansão meio morta, fazia recordar os alucinamentos e o gozo de uma flor de melancólico desejo alvorecida nos frios terrores de uma cova.
O andar, lento e grave, de um gracioso e nervoso balanceado de sonambulismo, maravilhava todo o seu vulto esquisito de um encanto desconhecido, como se ela, na verdade, caminhasse sob a magia de um sonho.
Vagamente, o espírito ficava arrebatado a cismar num grande lírio tenebroso de perfume adormecedor e fatal!
De longe, olhando-a entre o enevoamento do luar, ela passava-me na retina ferida de deslumbramento fantasioso, com cintilações de uma estranha serpente branca e negra, os movimentos coleantes e ondulosos do andar lento e grave de curiosidades e de ritmos imaginários.
Dir-se-ia a visão das tormentosas nevroses, a deusa cândida das singularidades emotivas, embriagada por vinhos sombrios e sutis de soberanos requintes.
Eu experimentava ao vê-la um estremecimento de fascinação e uma tontura de abismo, como se ela própria fosse um abismo que a pesar meu, bela e tremenda, me viesse estrangular com os seus abraços não sei de que sensação e nem de que delírio, num amor venenoso e luminoso ao mesmo tempo...
Não se sentia nela o contato carnal, o travo miserando, a garra cruel da matéria. Não era a lama vil que tomava aqueles inauditos aspectos. Certo não a carne venal mundanizada!
Uma força secreta fazia com que ela vagasse, caminhasse... Uma espiritualização nobre a revestiu de vida miraculosa — filtro das Esferas, ansiedade palpitante do Infinito, magno amor dos Espaços, imortalidade invisível das Cousas, quint'essência da dor do Nada!
Como que da su'alma de pinturesco de vitrais, sobre um fundo de madrugadas violáceas, deveriam irradiar aleluias lúgubres...
Mas, pela obsessão de olhá-la, parecia-me agora que ela não se movia mais, que quedara num ponto, imperturbavelmente olhando os longes indistintos, alta e branca, afilada como uma torre perdida nos descampados do céu, sob a lua em silêncio supersticioso...
Doze badaladas sombrias, mensageiras funestas do Sortilégio, ressoaram, soluçaram, cavas no ar, lentas, compassadas, monótonas...
Inquieto, febril como nunca, cravei o olhar agitado, sofregamente, no ponto onde devia estar a visão; porém ela havia desaparecido, se desfeito, quem sabe! reentrado nos seus mundos, ante as badaladas choradas e cabalísticas da Meia-Noite!
Ah! quem era, afinal, essa Visão, essa ave de luto e melancolia celeste?! Talvez a Arte?! Talvez a Morte?!