Contém este volume todas as obras de teatro orijinaes de Machado de Assis, com exceção de duas pequenas peças — Dezencantos e As bodas de Joanninha, — das quais não se achou exemplar.

Tambem não foi possivel descobrir das traduções que elle fez senão O suplicio de uma mulher, em copia manuscrita doada com outros papeis á Academia Brazileira. As traduções teriam lugar nesta coleção, como trabalhos que deviam ser compostos com o esmero literario peculiar a toda obra escrita por Machado de Assis. Não coliji todavia O suplicio de uma mulher, atendendo á circunstancia de estar riscado na copia referida o nome do tradutor, o que pareceu indicar a sua intenção de não dar a obra á publicidade em livro, ou talvez a sua opinião de não a ter literariamente acabado.

E’ pena que se tivessem perdido as outras traduções, particularmente Os descontentes, de Racine, que era em verso e da qual falava com muito louvor Arthur Azevedo. Ouvira-a elle em grande parte quando lida pelo proprio Machado de Assis a uma companhia portugueza, com o intuito de a fazer reprezentar. Posto fizessem parte da companhia alguns atores estimaveis e capazes de estimar um trabalho de Machado de Assis, não acolheram como era justo a peça, talvez por demaziado fina para o gosto e o costume do publico: e uma observação ou gracejo de um dos atores, Silva Pereira, aborreceu o tradutor, a ponto que suspendeu a leitura e recuzou aprezentar a peça. Talvez a rasgasse depois disso: o certo é que não houve mais noticia della, nem ficou vestijio seu entre os papeis do escritor.

As outras traduções, Queda que as mulheres têm para os tolos, Pipelet, O anjo da meia noite, O barbeiro de Sevilha, A familia Benoiton e Montjoye vêm citadas no dicionario bibliografico, de Sacramento Blake. Não lhes descobri o paradeiro e, salvo a primeira, parece que não chegaram a ser publicadas. Escreveu-as Machado de Assis entre os anos de 1860 a 1870, época do seu inicio na imprensa e da mais fervoroza e duradoura faze de literatura dramatica que já houve no Brazil. A influencia dos escritores francezes dominava como sempre em primeira mão a literatura brazileira e o exito da nova escola de teatro em França estimulava os ensaios dramaticos entre nós. Quazi que não houve escritor brazileiro que não experimentasse a sua vocação para o genero. O entuziasmo era sincero. Quem não podia compor obra orijinal contentava-se com traduzir as recentes produções chegadas da Europa. Em todos era o mesmo empenho e gosto de crear um teatro nacional.

Machado de Assis, nos seus ultimos anos, quando ouvia falar na rejeneração ou ainda creação desse teatro, costumava lembrar aquelle outro periodo da sua mocidade, e contava que alguns rapazes entuziastas, Sizenando Nabuco e outros, estudantes em S. Paulo, vinham ao Rio de Janeiro para assistir ás rcprezentações de peças novas. Iam a Santos tomar o vapor, que ainda não havia a estrada de ferro, e dois ou tres dias depois regressavam para a tarefa de academicos. Machado de Assis não fazia confronto entre as épocas e as gentes de uma e de outra, nem tirava concluzões. Olhava com simpatia a iniciativa e o esforço de Arthur Azevedo, e dezejava que fossem eficazes: mas estou que não confiava no rezultado delles. Não bastava que houvesse escritores de talento e rezolvidos a escrever para o teatro: não bastava ainda que houvesse um publico intelijente disposto a frequentar o teatro. O essencial, o imprecindivel é que surjissem autores dramaticos com o verdadeiro talento dramatico. Estes creariam o teatro, fariam o publico. Mas não havia auxilio oficial capaz de dar talento dramatico a quem não o tivesse, nem os aplauzos publicos poderiam suprir a vocação, sem a qual todos os esforços serão inuteis, ou si aparentemente proveitozos, efémeros. Assim fôra entre 1860 e 1870. Nesse tempo houve realmente uma produção dramatica notavel, pelo numero e não raro pela qualidade das obras, e sobretudo pelo valor dos escritores. Nenhum destes, porém, apezar do talento e da vontade deliberada ou impulsiva de escrever para teatro, chegou a revelar o verdadeiro enjenho dramatico, e sem esse dom, que se não adquire pelo estudo, era fatal que cansasse a preseverança do esforço individual, e em pouco tempo a produção dramatica no Rio de Janeiro, em que se rezumia então todo o Brazil, estivesse reduzida a uma ou outra tentativa no genero, espaçada e malograda. Foi o que sucedeu. E o cazo particular de Machado de Assis é típico. Ninguem mais do que elle possuia as qualidades ou condições capazes de suprir algum dom de que carecesse: tinha o enjenho forte, a pertinaçia do esforço, a leitura dos mestres, a constancia do estudo, a vontade de produzir, o gosto apurado, o conhecimento da lingua, a habilidade de observar e generalizar. Pois com todos esses elementos elle não poude adquirir o talento dramatico. Elle proprio o sentiu e reconheceu; mas nos primeiros anos de moço parecia confiar na ação da sua vontade e na continuidade do trabalho. E a sua ambição nesse tempo era a obra do teatro. E' o que inculca a publicação das suas primeiras comedias O Caminho da porta, O protocolo, em 1863, e declaradamente a carta com que as prefaciou, dirijida a Quintino Bocayuva, seu amigo e emulo literario.

« Tenho o teatro, diz elle aí, por couza muito seria mas minhas forças por couza muito insuficiente; penso que as qualidades necessarias ao autor dramatico dezenvolvem-se e apuram-se com o tempo e o trabalho; cuido que é melhor tatear para achar; é o que procurei e procuro fazer. Caminhar destes simples grupos de cenas á comedia de maior alcance, onde o estudo dos caracteres seja concienciozo e acurado, onde a observação da sociedade se caze ao conhecimento pratico das condições do genero, eis uma ambição propria de animo juvenil, e que eu tenho a imodestia de confessar. E tão certo estou da magnitude da conquista, que me não dissimulo o longo estadio que ha a percorrer para alcançal-a. E mais. Tão dificil me parece este genero literario que, sob as dificuldades aparentes, se me afigura que outras haverá, menos superáveis, e tão subtis que ainda as não posso ver.

Até onde vai a iluzão dos meus dezejos? Confio demaziado na minha perzeverança? Eis o que espero saber de ti. »

Quintino Bocayuva respondeu-lhe acertadamente, como bom amigo que era delle, e sagaz e criteriozo.

« As tuas duas comedias, modeladas ao gosto dos proverbios francezes, não revelam nada mais do que a maravilhoza aptidão do teu espirito, a profuza riqueza do teu estilo. Não inspiram nada mais do que simpatia e consideração por um talento que se amaneira a todas as formas da concepção. Como lhes falta a idéa, falta-lhes a baze. São belas, por que são bem escritas. São valiozas, como artefactos literarios, mas até onde a minha vaidoza prezunção critica pode ser tolerada, devo declarar-te que ellas são frias e insensiveis, como todo o sujeito sem alma. Debaixo deste ponto de vista, e respondendo a uma interrogação direta que me dirijes, devo dizer-te que havia mais perigo em aprezental-as ao publico sobre a rampa da cena do que ha em oferecei as á leitura calma e refletida. O que no teatro podia servir de obstáculo á apreciação da tua obra, favorece-a no gabinete. As tuas comedias são para serem lidas e não reprezentadas. »

Este conceito é rigorozamenle justo e aplicavel a todo o teatro de Machado de Assis. Entendeu-o e aceitou-o desde logo o escritor, cujo discernimento critico era dos mais completos que já conheci, e abrindo mão das suas ambições dramaticas, uzou do seu grande talento para a obra a que o dispunha uma vocação absoluta e que havia de fazer a sua gloria, o conto, a poezia, o romance e a critica. E' verdade que ainda escreveu algumas comedias e cenas dramaticas; mas não as destinava ao teatro, senão a saraus literarios, ou á reprezentação de salão. Aí é que ellas devem ser ouvidas e apreciadas; não fica despercebido o encanto do estilo nem a graça do entrecho, nem o primor do dialogo. Dão a impressão de se estar ouvindo aquelle conversador arguto e fino, que foi Machado de Assis, personificando-se em cada figura das peças. Mas já não ha saraus nem salões literarios como nos bons tempos que se foram; e era precizo não deixar esquecidas todas estas obras, que se não tivessem outro merecimento, tinham o de ser obras de Machado de Assis. Foi o que induziu o editor H. Garnier a dal-as nesta coleção reunindo-as ás já publicadas em outros volumes. E' mais um titulo de gratidão dos admiradores de Machado de Assis ao benemerito editor a quem tanto devem as letras brazileiras.


Rio, Dezembro de 1909.


Mario de Alencar.