Tendencias novas da poesia contemporanea a preposito das Radiações da Noite

O seculo XIX, cujos primeiros annos enflorou uma corôa poetica de esplendor incomparavel, tem mentido cruelmente ás esperanças da sua aurora. Envelhecendo, perdeu o dom do canto, ou, pelo menos, o sentimento que faz os cantores verdadeiros. Os Goethe, os Byron, os Lamartine, os Miczkawicz, os Hugo, os OEhlenschlaeger, não deixaram descendencia digna d'aquella poderosa geração. O romantismo foi um meteoro. O grande canto do seculo esvaeceu-se gradualmente n'um murmurio. A poesia contemporanea não tem unidade, e não tem sobre tudo o largo folego de inspiração, que caracterisa as verdadeiras épocas poeticas. O interesse do tempo dirige-se evidentemente para outro lado. No meio das preoccupações da actualidade, a poesia é como a canção de um conviva distraído que se affasta da sala do festim, e cuja voz se perde pouco a pouco no silencio da distancia e da noute.

Depois do apparecimento do romantismo, a sua queda é o maior facto litterario, do seculo. Porém essa queda, que como facto todos reconhecem, mas cuja phenomenalidade poucos tentam explicar, será uma justa sentença lavrada pela razão publica, ou será uma condemnaçao arbitraria que deshonra o tribunal que a firma? Indicará para o espirito do nosso tempo um progresso ou uma decadencia? uma gloria ou um deslustre aos olhos da historia?

Não hesito em responder. O romantismo foi justamente condemnado. O seculo, com um sentimento lucido da sua verdadeira missão, affastou-se d'aquelles que lhe fallavam uma linguagem, cujo brilho, cuja eloquencia, cuja sinceridade, por maiores que fossem, não podiam encobrir o falso do principio, que a inspirava. Essa missão é essencialmente positiva, social e racional, e o romantismo era essencialmente apaixonado, individual e subjectivo. Por mais que se virasse para o futuro, a sua alma pertencia ao passado; emquanto que o seculo, ainda nos momentos em que parece invocar o passado, é sempre para o futuro que caminha. No fundo, uma sociedade saída da revolução, e uma poesia que se inspirava das tradições da edade-media, contradiziam-se, negavam-se radicalmente. Um equivoco historico pôde por um momento estabelecer aquelle infundado accordo: no dia, porém, em que se conheceram, separaram-se.

Ainda ha muita gente que sente, chora, crê, e aspira, á maneira dos grandes, melancolicos e apaixonados de 1820. Mas já nos não commovem como então, já não influem poderosamente no mundo que os rodeia. São vozes sem ecco. É quanto basta para que nada signifiquem, historicamente: tanto mais que aquellas vozes frouxas não teem já o timbre ardente de indomavel paixão, que nas outras nos commovia. A paixão d'estas é mais estudada na escola, do que saída do coração. Não é já como então, um convencimento violento dos direitos da propria loucura, que os inspira: são apenas os livros dos mestres: ora, não é nos bancos apertados da escola, mas no seio da livre natureza, que se criam os verdadeiros poetas.

Os poetas da geração actual vêem-se pois, rasgado aquelle veo phantastico da sentimentalidade d'outr'ora, em face d'uma sociedade, que elles não comprehendem, porque ella mesma a si se não comprehende bem, mas que os não quer escutar senão com a condição de lhe falarem d'aquillo que a interessa e a preoccupa, de se inspirarem da sua vida real e das suas verdadeiras aspirações. É d'esta situação anormal que resulta a incerteza, a anarchia, a fraqueza da poesia contemporanea. A idéa poetica acha-se confusa, embaraçada no meio de factos sociaes, que se não definem claramente: as fontes da inspiração correm escassas ou turvas. A antiga nascente, tão querida e conhecida, está quasi secca: a nova, já por ser nova, e depois por que só deixa rebentar, em cachões, uma agua turbida, cheia de elementos estranhos, assusta os que a ella se chegam pela primeira vez; os mais ousados inclinam-se um momento, tomam a medo um golle da bebida suspeita, e retiram-se furtivamente como se acabassem de fazer uma acção má.

E todavia, é alli que é necessario beber, porque é alli, n'aquellas aguas rumorosas e confusas, que se conteem os elementos da inspiração real, os principios vitaes de que se nutre a sociedade, e de que tem por conseguinte de se alimentar tambem a poesia, sob pena de se tornar uma abstracção, um phantasma, uma puerilidade. O problema da evolução poetica na actualidade encerra-se todo n'isto.

Mas aqui apresenta-se uma questão, que nos detem. Terá a sociedade contemporanea (essa sociedade, ao que dizem, positiva até ao mais desolador utilitarismo) na sua atmosphera suffocadora de industria, de lutas sociaes e de sciencia friamente analytica, condições de vida e desenvolvimento normal para a constituição delicada das castas musas, das musas melindrosas e scismativas? Não será uma sociedade essencialmente anti-poetica, esta nossa, um mundo rebelde a toda a idealidade? Por outras palavras; poderá haver poesia racional, positiva e social? Será um ser poetico o homem do nosso tempo?

Intendo que póde haver tal poesia; que a alma moderna, na sua titanica aspiração de verdade e justiça, é poetica, poetica essencialmente, d'aquella poesia forte e audaciosa dos mythos de Prometeu e Ajax; que ha uma fonte abundante de inspiração n'esta luta historica de nações, de classes e de idéas, que é a epopea e a tragedia viva do nosso seculo; que, finalmente, á maneira que os factos confusos da nossa epoca se forem desembrulhando, mais lucida e evidente se irá mostrando a idealidade sublime que n'esse chaos apparente se contém.

E a idéa d'essa poesia nova não só existe, mas deve ser superior á idéa poetica das eras anteriores, porque corresponde a um periodo mais adiantado da consciencia humana, penetra com maior intensidade a natureza e o espirito, extrae o bello da propria realidade universal, não das visões de um subjectivismo inexperiente, e dá por base ao sentimento, em vez de sonhos e intuições quasi instinctivas, os factos luminosos da rasão.

Os caracteres essenciaes d'essa poesia já hoje se podem indicar, e todos elles se consubstanciam n'uma palavra, que resume tambem as tendencias da nossa civilisação: o Humanismo. A inspiração social e naturalista vem substituir a sentimentalidade toda subjectiva e pessoal, ou o transcendentalismo contemplativo de outras idades poeticas. A poesia deixa de duvidar e scismar, para affirmar e combater; mostra-nos o interesse profundo e o valor ideal dos factos de cada dia; dá ás acções, que parecem triviaes, da vida ordinaria, um caracter, e significação universaes; e surrindo maternalmente para as creanças, as mulheres, os simples, caminha todavia armada no meio das lutas dos homens.

Uma tal missão ninguem dirá que é mesquinha ou vulgar: ha n'isto com que tentar os mais altos engenhos, captivar os corações mais generosos. E, sobretudo, deve seduzir os espiritos verdadeiramente poeticos acharem-se em communicação directa e constante com o seu tempo, com as aspirações, os interesses, as crenças da sociedade que os rodêa, e de cuja vida vivem, como meio historico a que fatalmente pertencem.

Certamente que essa evolução nova da poesia tem de ser lenta, como lenta é a evolução do edeal social, que a deve inspirar. Ha um certo receio, e uma certa incerteza. O novo assusta: o indistincto faz hesitar, mas insensivelmente, e fatalmente tambem, caminha-se n'aquella direcção. Os symptomas d'este movimento tornam-se cada dia mais accentuados. Em França e Allemanha, sobre tudo, paizes aonde as idéas e tendencias novas se pronunciam n'uma agitação crescente, podem já indicar-se exemplos bem significativos; em Allemanha ainda mais do que em França. Alli a poesia inspira-se resolutamente das lutas sociaes e religiosas do tempo, e abalança-se já, ainda que com incerta fortuna, ás grandes composições epicas, aonde se desenha uma sociedade, consubstanciada nos seus typos e paixões mais caracteristicas. Entre nós, ha apenas indicios tenues e raros, mas que, porisso mesmo, devemos recolher tanto mais cuidadosamente, quanto parecem provar que nem tudo está inteiramente morto no espirito portuguez, e nos animam a esperar com alguma confiança n'um melhor futuro.