Naquele mesmo dia Evaristo de Holanda mudou-se para um hotel no Campo da Aclamação. — "Bastava de fidalgos..." Não quis levar os trastes, porque — dizia ele — não lhe pertenciam; recolheu apenas os baús que trouxera do norte, um ou outro objeto que comprara depois, inclusive um grande quadro de Tiradentes e os livros, meia dúzia de volumes encadernados.
Quando às seis horas o carro parou à porta de Furtado, a vizinhança toda chegou à janela. O desembargador Lousada, com o indefectível gorro, a mulher e a filha também apareceram, D. Sinhá, branca de pó-de-arroz, falava tão alto que se ouvia dos extremos da rua. — Só nessas ocasiões aquele trecho do bairro animava-se um pouco; o mais simples episódio, um incidente qualquer fora do comum dava às casas aspecto novo de quarteirão em festa, excitando a curiosidade dos moradores, transmitindo-lhes aos nervos uma sensação especial de alegria, de bom humor e de íntima aliança entre o corpo e o espírito. Era necessário que um sopro de escândalo varresse a atmosfera estagnada dos brasões e do preconceito fidalgo para que o longínquo recanto de Botafogo sentisse um calor de vida, um frêmito de existência animal nas artérias.
Bastava o rodar de uma carruagem: todo o mundo esquecia obrigações para satisfazer uma necessidade imperiosa do espírito e do olhar. As varandas enchiam-se, mil cabeças surgiam como peixes à tona d'água. Era a avidez do escândalo, a eterna bisbilhotice de operários e ociosos, de homens e mulheres, acordando para a faina do dizia-se, para a mistificação do boato.
Um carro à porta dos Furtado! Ainda se fosse o do visconde... mas não — não era o cupê do Santa Quitéria... Talvez alguma visita de cerimônia... Entretanto — coisa notável! — as janelas do primeiro andar estavam fechadas e não havia ninguém na varanda do secretário!
A filha do desembargador cravava os olhos na alta frontaria do sobrado:
— "Ninguém"!
E aquele "misterioso" veículo de segunda ordem, atrelado com animais de ínfima espécie, causava arrepios de curiosidade — era como um ponto de interrogação erguido a fidalgos e burgueses no meio de uma rua sombria.
Luís Furtado passeava de um lado para o outro, na sala de jantar. Incomodava-o a brusca retirada do amigo, não obstante as insinuações odiosas da mulher. D. Branca enchera-lhe os ouvidos: que fora desacatada pelo bacharel, que o marido "da Sra. D. Adelaide" era um grosseirão; que antes nunca os tivesse admitido em sua casa; que o culpado era ele, Furtado, homem de muitas facilidades e de pouca experiência...
O secretário ouvia tudo com uma resignação de carneiro imolado, sem proferir palavra, sem a mais leve queixa. Não foi pedir explicações ao amigo: esperou os acontecimentos com a mesma calma de homem que sabe ajuizar dos homens e crê numa fatalidade que a tudo resiste e tudo domina na ordem moral e nas relações sociais.
O Evaristo era um pancada, ele o sabia melhor que ninguém: para que provocá-lo? Esperava, até que o bacharel se resolvesse a um acordo, a uma conciliação honrosa para ambos. Nenhum dos dois tinha a lucrar com um rompimento escandaloso e menos digno de cavalheiros que se prezam. Imaginava Adelaide sucumbida, os olhos em pranto, o coração intumescido de desgosto — pobre senhora! — às voltas com um homem de gênio pirrônico e macambúzio, sem o necessário equilíbrio para a vida doméstica — exagerando tudo, revoltando-se contra todos.
Como ela havia de estar sofrendo, aquela pomba sem fel!
E o secretário do Banco Industrial forrava-se de uma tranqüilidade assombrosa para não dar a perceber a D. Branca o pesar, o grande pesar que lhe causavam a história do ataque e a narrativa do episódio com o bacharel na presença de Adelaide.
Ela, coitada, ela também sentia muito, a jovem esposa de Evaristo; habituara-se àquele viver, àquela existência em comum com os Furtado e doía-lhe, agora, como um punhal que lhe enfiassem nas carnes tenras, o abandono de todas as comodidades, a separação brusca das duas famílias tão intimamente unidas no princípio, quando ela chegara ao Rio de Janeiro... E por quê? Por nada, por coisíssima alguma, por um simples capricho, por uma fatalidade!
Evaristo desceu ao lado da mulher, guiando-a na escada, todo cauteloso, carregando-a quase.
— Não te despedes?... — lembrou ela.
— Eu?!
E com uma ironia na voz:
— Queres me debicar...
Adelaide não insistiu: foi-se deixando levar até embaixo, à porta da rua, como uma convalescente.
O boleeiro abriu, com um movimento estabanado, a portinhola do carro e ela entrou. Foi como se entrasse numa prisão para nunca mais sair; tudo escureceu ao redor dela, como se lhe tapassem a vista com um pano negro; faltava-lhe o ar, faltava-lhe a lucidez do espírito, fugia-lhe a clarividência das coisas, fugia-lhe tudo! Apenas um objeto perdurava na sua imaginação; — triste esfinge na aridez de um deserto — a figura do secretário, mais do que nunca tentadora, numa auréola deslumbrante que o divinizava, olhando-a, todo voltado para ela, todo dela...
E um golfão de lágrimas, uma torrente de pérolas brotou caudalosa de seus olhos meigos, ensopando o lencinho de rendas que lhe dera Evaristo no seu último aniversário.
— São os Holanda, são os Holanda! — repetiu, espevitada, a filha do desembargador.
E a vizinhança toda repetiu baixinho:
— São os Holanda...
Furtado, quando soube que o amigo abalara, não sentiu menos que Adelaide a rudez do golpe, e, instintivamente, revoltou-se contra a mulher, contra a asa-negra de D. Branca, origem do desespero que lhe ia no fundo d'alma. Guardou, porém, esse desespero no mais íntimo do coração, trancou-o a sete chaves lá onde ninguém o pudesse desvendar, forte como um herói vencido, e apelou para a Fatalidade...
Mas o destino é caprichoso e não quis que o secretário tomasse a pôr os olhos insaciáveis na miragem que o fizera sonhar noites inteiras, dias inteiros, na ânsia de um gozo novo.
Embalde esperou, embalde correu lugares aonde nunca o conduzira a sede de aventuras: ninguém lhe dava notícias do bacharel. Para onde teria ele ido? Como explicar o eclipse total daquela mulher numa cidade como o Rio de Janeiro, em que toda a gente se encontrava por mais que se quisesse ocultar? De que ia viver Evaristo, agora, sem um amigo que lhe desse a mão? De que ia viver a pobre Adelaide numa época tenebrosa de empréstimos forçados e de gerais clamores, quando o próprio Banco Industrial não oferecia segurança?
E enquanto por um lado apiedava-se do amigo, quase arrependido de o ter deixado ir embora sem rumo certo no mare magnum da vida, por outro lado reconstruía mentalmente o episódio do Jardim Botânico, em que fora protagonista a esposa do bacharel, e sentia extraordinária volúpia cada vez que se lembrava daquele beijo de fogo, mais precioso que todas as riquezas do mundo e cujo calor como que lhe ficara impregnado na boca para todo o sempre... Ela o repelira brandamente, cheia de dignidade, cheia de pudor, fiel ao homem que escolhera para esposo; mas nisso é que estava o sabor esquisito e fidalgo que lhe ainda permanecia, por um efeito da imaginação, nos lábios trêmulos...