Não obstante o insucesso da primeira tentativa, Luís Furtado não renunciou aos seus projetos de conquistar o coração de Adelaide, aquele coração misterioso e duro como uma esfinge de bronze..." Nada de precipitar os acontecimentos, nada de escândalos! A vida é uma eterna luta: ele lutaria... Resistir às tentações do homem quase que é um dever de toda a mulher. A sociedade aí está de olho aberto para, de chofre, cair, como um raio, sobre os visionários do amor, os que transgridem as leis da Moral com prejuízo de terceiro... E a mulher, a pobre mulher é quase sempre a vítima indefesa — o cordeiro imolado em sacrifício do homem. Resistir, todas resistem; poucas, no entanto, levam a resistência ao fim.
Adelaide era o que se pode chamar uma esposa meiga e boa, tinha todos os predicados de uma senhora honesta... Mas Luís Furtado queria-a justamente por isso, pelas suas excelentes qualidades de burguesinha não corrompida, que idolatra o marido, que não vai a bailes, que fecha os olhos à vida mundana e que se faz respeitar em casa ou nos lugares públicos. O orgulho é tanto maior quanto mais difícil é a vitória, nos combates do Amor. — Oh, ele o sabia muito bem, muitíssimo bem... O caso de Adelaide era, além de tudo, um caso excepcional, uma tentação de nova espécie, e para os casos novos a prudência aconselhava toda a diplomacia, toda a sutileza... A primeira vez — nada! A segunda vez — nada! Mas a terceira vez... quem sabe?...
Estas considerações, fazia-as ele à noite, ao lado da esposa, ou no seu gabinete do rés-do-chão, quando estava só, ou nas horas do trabalho, no Banco, a dois passos do Evaristo, onde quer que estivesse, mesmo na rua. E concluía sempre de bom humor, um trecho de ópera a escapulir-lhe dentre os lábios como uma canção de triunfo: Trá-lá-lá... trá-lá-lá... trá-lá-lá!...
Ia tudo em casa às mil maravilhas, tudo inclusive o canário belga que ele tinha pendurado numa gaiola, na sala de jantar. Depois de Adelaide era a sua preocupação o canário belga; esquecia-se, a ouvi-lo cantar, pela manhã, antes do almoço, enquanto lia os jornais. D. Branca, o Raul e a Julinha não lhe davam grandes cuidados. A mulher encarregava-se dos pequenos. O Raul, esse vivia no colégio.
Quanto aos do segundo andar, os Holanda, a mesma amizade fraternal, as mesmas relações. Branca e Adelaide entendiam-se.
Evaristo é que não dispensava agora uma sortida à noite. Acabava de jantar, envergava o paletó, punha o chapéu e adeusinho, té logo... — ia assistir às sessões noturnas do Clube Republicano de Botafogo.
Adelaide habituou-se àquilo, e para não ficar sozinha no segundo andar, vinha distrair-se embaixo, na companhia de D. Branca e de Furtado até que o marido chegasse do clube, ordinariamente às onze horas, quando já não havia vivalma na rua. Nesse ínterim tocava-se um pouco de piano; jogava-se a dama ou o três-e-sete, conversava-se à luz do gás, na sala de visitas, ou então na sala de jantar, em torno à mesa oval coberta com um pano grosso de lã, arabescado.
O secretário ocupava a cabeceira, como nas refeições, D. Branca à direita e Adelaide à esquerda e principiava o jogo. — Isso quase todas as noites, quando ninguém os vinha visitar. O bacharel encontrava-os naquela intimidade, os olhos rubros de sono, disputando uma última partida, como três pessoas muito amigas, cada uma das quais existe porque as outras duas existem.
Boa vida! — costumava dizer Evaristo arriando o chapéu, num tom de adorável bonomia.
— Que se há de fazer senão isto mesmo? — replicava o secretário. — A política é para os bacharéis; eu prefiro as cartas.
— Como vamos de república, Sr. Evaristo? — gracejava a esposa de Furtado.
— Muito bem, D. Branca. E extraordinário o número de adesões. A idéia prospera e... le monde marche!
— Isso é o que se quer...
— Obrigado, excelentíssima, obrigado em nome do Progresso... O elemento feminino há de colaborar na obra da redenção do Brasil...
Uma dessas noites o secretário, aproveitando a ausência de D. Branca, e, em conversa com Adelaide, aludiu, indiretamente, ao episódio do Jardim Botânico. — "Nunca mais havia de esquecer o desgosto que tivera, o doloroso instante que passara..."
Ela compreendeu a alusão, mas não teve sequer uma palavra em resposta.
Furtado continuou, baixando a voz:
— No entanto, D. Adelaide, eu estimo-a, como se fosse minha irmã. Nunca mulher alguma dominou tão poderosamente um coração. Não quero dizer que a amo, porque... porque seria uma deslealdade... Que idéia faz de mim? Pensa então que eu não considero as coisas, que me deixo levar por utopias ou por sentimentos que nivelam o homem com o animal? O meu estado obriga-me à circunspecção, ao respeito, à sizudez. Além disso, eu não desejaria para os outros o que não quero para mim...
Adelaide, sempre muda, o rosto voltado para o piano, batia com a ponta do pé no soalho, inquieta, uma exacerbação de todos os nervos, quase a romper numa caudal de desespero.
O secretário ia continuar, mas D. Branca penetrou na sala.
Daí em diante Furtado não perdia ocasião de aludir ao episódio do beijo com uma insistência atrevida, numa voz untuosa de padre que aconselha um pecador. Ela ouvia-o — que remédio! — de olhos baixos, calada, sem exalar um suspiro, sem fazer um movimento, presa ao chão, como uma estátua. Era a mesma sempre, a mesma mulher fraca, incapaz de repelir qualquer ofensa aos seus brios de esposa honesta, dócil como um animaízinho que a gente acaricia, meiga como uma pomba. E esta passividade era tanto maior porque Adelaide estimava o secretário, habituara-se a vê-lo todos os dias, a receber favores e finezas dele e D. Branca, a considerá-o quase como um parente. Romper agora, depois de tantos meses de intimidade, — que escândalo! Não pensava tampouco em ceder, isso nunca lhe passara pela idéia. Era toda de Evaristo, toda do seu marido, a quem amava e respeitava abaixo de Deus. Nada se lhe afigurava tão desprezível como uma mulher adúltera, uma mulher que pertence a mais de um homem, depois de ter escolhido publicamente um esposo, um companheiro eterno para as suas dores e para as suas alegrias. Demais Evaristo nunca faltara com os deveres de homem casado: adorava-a como se adora a imagem de uma santa; era sempre o mesmo Evaristo da província, o mesmo caráter bondoso, e reto, confiando nela, sacrificando-se por ela, respeitando-a também. Lamentava que o marido de D. Branca, "homem distinto e de tão belos modos, de tão fina educação, tentasse uma coisa impossível, julgando-a capaz de um ato vergonhoso e torpe!" Lamentava em silêncio, pungida de desgosto, e não raras vezes umedeciam-se-lhe as pálpebras, quando estava só refletindo nas coisas da vida.
E tornava a pensar: — Antes nunca houvesse deixado a casinha de Coqueiros, perdida entre árvores, longe de tentações.
Mas Evaristo chegava e ela redobrava de carinhos abraçando-o, como se quisesse pregar-se a ele, beijando-o, e iam os dois unidinhos por aquele tristonho segundo andar que sem ele era um deserto.
O bacharel agora vivia para Adelaide, para a república e para o Clube Republicano de Botafogo. Não pensava noutra coisa. A propaganda abolicionista entusiasmava-o, porque, dizia ele, feita a abolição, estava feita a república, e um país de escravos é um país atrasado. O escravo era ainda o único obstáculo para a realização da forma democrática no Brasil!
Nas discussões com os amigos ia buscar no próprio direito romano argumentos contra a escravidão. Um dia o diretor do Banco Industrial preveniu-o que "ali não era lugar de palestras"... O diretor do banco possuía fazendas em São Paulo. Evaristo queixou-se a Furtado.
— Você logo não está vendo que eu não troco as minhas idéias por um lugar de escriturário! — bradou ele. — A república há de se fazer, depois da abolição, e tudo quanto é visconde e marquês vai para a rua!
— Isso devias tu dizer ao diretor, não a mim... — obtemperou gravemente o secretário. — Por que lhe não respondeste?
— Ora, porquê! Porque não há liberdade, porque neste país domina o capital e sem dinheiro ninguém vive!
— Ah! neste caso, meu amigo, é sempre melhor o empreguinho do que as tais idéias!
Evaristo, porém, ameaçava o diretor do banco com o novo sistema de governo, e citava episódios da revolução francesa, repetindo os nomes de Marat, Robespierre e Danton, batendo com o punho na mesa, erguendo-se na ponta dos pés, num entusiasmo apaixonado pelos homens de 1789.
Furtado às vezes, por distração, opunha-lhe argumentos em defesa da monarquia, rebaixando Marat, chamando-o de assassino, de bandido, apelando para o juízo da história e para as altas qualidades do imperador do Brasil. Via-se, então, o marido de Adelaide ficar sem gota de sangue no rosto, desabotoar o paletó, o colete, arregaçar as mangas e berrar, como um possesso, contra os ministros da coroa, contra o regime imperial, contra os abusos do Poder!
— Eu lhe peço, Sr. Furtado, pelo bem que quer à D. Branca: não discuta política com o Evaristo! suplicou uma vez Adelaide.
Furtado olhou-a, enternecido, e jurou por todos os santos da Corte celeste, não mais discutir política com o Evaristo.
De modo que o bacharel agora não se expandia em casa sobre as deliberações do clube ou sobre os acontecimentos políticos da última hora.
— Que há de novo? — perguntava o secretario.
— Nada... — respondia ele com despeito.
E costumava dizer à mulher, em tom de solene desdém:
— Esse Furtado é um idiota! Não tem idéias políticas, não tem convicções! Eu, às vezes, palavra! o aborreço!
Adelaide defendia o secretário: — "Não havia razão para aborrecer o homem, somente porque ele não era republicano... Cada qual tem a liberdade de pensar como quer... Isso de idéias varia.
— Mas discuta seriamente, prove como o sistema de governo que defende é superior ao republicano, fale, diga... mas não se ponha a rir e a insultar os outros!
— Ele não insultou...
— Insultou, sim, senhora; já não é a primeira vez que tenta profanar a glória de Saldanha Marinho! Não quero! não admito!
— Olha que ele nos tem feito muitos favores.
— Reconheço e sou-lhe agradecido... mas não é razão... Amigos amigos, negócios à parte.
Falavam baixinho para que ninguém os ouvisse. Evaristo acabava repetindo que ia procurar casa antes de qualquer rompimento — casa de pobre, casa de cinqüenta mil-réis, na Cidade Nova, no Castelo, no Morro do Pinto, no inferno!
Adelaide, sempre que o marido falava em procurar casa, estremecia. Por quê? Não sabia... não sabia por quê. Era-lhe talvez mais agradável voltar à província, deixar o Rio de Janeiro, a Corte, as aparências de uma vida fidalga, e recolher a um canto esquecido e longínquo, onde ninguém a visse... O mundo é muito grande.
— Eu o que quero é estar à vontade com as minhas idéias! — rematava o bacharel.
Nada o importunava tanto, agora, como a presença de um aristocrata. A mulher do desembargador Lousada com a sua luneta de tartaruga e com os seus modos afetados de dama do Paço; o visconde de Santa Quitéria, muito enluvado, muito correto; barões e comendadores, que freqüentavam a casa do secretário — todos o aborreciam. — "Canalha de graúdos! Corja de mandriões! Visconde... que quer dizer um visconde? Que quer dizer um barão? Que quer dizer um comendador?"
Adelaide pedia, cansava de pedir, suplicava de mãos postas, que falasse baixo, por amor de Deus! — Ele moderava o seu ódio aos grandes e punha-se a fumar ou a ler.
Ambos viviam muito preocupados: o bacharel com a política, Adelaide com a insistência do secretário, sem se esquecerem um do outro, amando-se como noivos em lua-de-mel. Ela, sobretudo, por uma extraordinária delicadeza do sentimento, por um nervosismo doentio, não lograva arredar da imaginação os olhos de Furtado, a boca sensual de Furtado, o rosto inteiro daquele homem que era como uma tentação do inferno a persegui-la, a persegui-la... Evitava-o, como se evita um perigo, como se evita um abismo, uma desgraça... Mas quase não tinha força para reagir, para dominar a impressão que lhe enchia o espírito, escravizando-a, subjugando-a imperiosamente. Via-o a todo o instante, mesmo quando ele não estava em casa — via-o risonho, afagando o bigode, olhando-a com a meiguice de um namorado, com aqueles olhos muito sedutores, de uma doçura infinita — e perdia de vista o marido, como se já pertencesse ao outro, ao estranho.
Uma noite em que o bacharel se demorava até quase uma hora da madrugada no clube, ela só faltou perder o juízo. Bateu dez horas, onze horas, e o Evaristo "na rua!" Adelaide começou a ficar nervosa, a concentrar o espírito numa idéia lúgubre... — "Se lhe houvessem assassinado o marido!... Se algum inimigo... algum ladrão o tivesse apunhalado às escuras num beco, ao sair do clube?... Que horrível coisa a viuvez de uma pobre mulher como ela, órfã e desconhecida!
E seus olhos buscavam Furtado instintivamente, como os olhos de um náufrago a sombra longínqua duma vela. À proporção que as horas passavam, confrangia-se-lhe o coração numa angustiosa crise de desânimo.
A luz da sala de jantar entibiava-se, parecia ir morrendo aos poucos, uma consumpção lenta.
D. Branca explicou: — "era água no gás..."
Deu meia-noite. Adelaide tirou do bolso do vestido o lenço, baixou a cabeça e explodiu num choro nervoso.
— Pelo amor de Deus, D. Adelaide! Chorando à toa! — disse o secretário.
— À toa, à toa — repetiu D. Branca.
E tratavam ambos de distrair a esposa do bacharel, consolando-a, rindo, gracejando à custa de Evaristo:
— O homem está metido com os republicanos, minha senhora! — dizia Furtado. — Isso de república e como o espiritismo: põe a gente doida!
— E, depois, ele já não é criança, Adelaide! — juntava D. Branca. — Você logo não está vendo que a sessão de hoje foi maior que a dos outros dias?
Mas Adelaide não tirava os olhos do relógio, o lenço na mão, todo úmido, um ruborzinho na ponta do nariz.
— Ah! meu Deus, permiti que aquele homem já volte!
— Há de voltar, há de voltar — por que não?
E o secretário rondava a mesa, de um lado para o outro, indo e vindo, com o seu ar de fidalgo, calça de casimira e paletó branco.
Foi então que, pela primeira vez, Adelaide viu quanto estimava o marido, quanto o idolatrava. Aquela demora doía-lhe como se o já estivesse contemplando morto no meio da casa, dentro de um caixão negro com galões de ouro...
Mais um quarto de hora: novo acesso de choro.
— Menina, tenha paciência que o homem vem! Adelaide! — ralhou D. Branca.
Com efeito, a campainha retiniu no corredor e uma alegria súbita iluminou o rosto de Adelaide que ergueu-se para ver chegar o bacharel.
Evaristo vinha carrancudo, muitíssimo sério.
— Boa noite! cumprimentou, respeitoso.
— Oh, Evaristo! — fez a esposa abraçando-o.
— Oh, o quê?
— Que horas!
— Então, faz-se ou não se faz a república? — interrompeu o secretário.
— Não posso responder agora; estou com muito sono... — disse, enfadado, o bacharel.
— Acredito, acredito; vamos tratar de dormir, que já passa de meia-noite.
Trocaram-se ainda algumas palavras frias, sem interesse, e os dois casais separaram-se.
Adelaide compreendeu que o marido estava de mau humor e não lhe fez a menor pergunta, a mais leve recriminação: tinha-o a seu lado — era o principal. Ele também não disse a causa da demora, nem falou em coisíssima alguma. Cantarolava baixo, desafinadamente, enquanto se despia.
Mas Adelaide não adormeceu logo; ferroava-a uma espécie de remorso, um vago arrependimento de ter pensado, com insistência, numas tantas loucuras de mulher sem juízo, nem moralidade... ela "a mais honesta das esposas, a mais virtuosa das donas-de-casas". Como aquilo fora, não sabia; o certo é que tinha uma espécie de remorso, uma dor no fundo d'alma como um ponto negro na brancura da sua consciência.
Duas vezes viu, à luz do quarto, o rosto tranqüilo do bacharel dormindo e duas vezes teve vontade de o acordar, simplesmente, para lhe dizer "que estava nervosa"; mas não se animou: preferiu respeitar o sono calmo de Evaristo. Chegava-se a ele, medrosa, supersticiosa, sentindo-lhe a quentura do corpo, a respiração ronronada, e encolhia-se muito franzina, quase a desaparecer nos lençóis, como uma criança. Uma figura de homem interpunha-se entre ela e o marido, tentadora, chamando-a com os lábios fechados em beijo, criminosamente, o olhar voluptuoso, fosforescente de desejo, pousando nela e queimando-lhe as faces.
— Evaristo! Evaristo!
— Há!... Que é?
O bacharel levantou a cabeça, espantado, os olhos muito vermelhos de sono.
— Que é?... — repetiu.
Adelaide estava diante dele fitando-o, como se o não reconhecesse. Mas, ouvindo-o falar:
— Nada... uma sombra...
— Que sombra?
— Uma coisa na parede...
— Pois tu ainda estás acordada?.
Ela não respondeu; tornou a deitar-se, muda, com arrepios de frio, enroscando-se toda.
Foi uma noite de pesadelos, de sonhos incríveis e de sobressaltos.
Adelaide, pela manhã, jurou ir-se embora daquela casa, fugir para longe, voltar à província, onde nunca o demônio lhe sorrira tão de perto.. Em Coqueiros, ao menos gozava tranqüilidade, ninguém lhe ia meter na cabeça idéias perniciosas a titulo de civilização, nem era obrigada a luxo e a hipocrisias. E outra vez a imagem da negra Balbina, como um tipo primitivo de ingenuidade e candura, acenava-lhe do fundo da memória, recordando-lhe o passado, os tempos felizes de uma existência quase bíblica, dourada pela esperança e pelo amor... Começava a odiar o Rio de Janeiro — esse Botafogo aristocrata e imoral, cheio de convenções, onde todo o mundo era grande, onde não havia pobreza, nem sinceridade, e só se falava no Lírico, em Petrópolis e vestidos à última moda e passeios a carro e piqueniques e na família imperial! Já podia ter-se mudado, já podia estar longe de tanta mentira. A culpa era sua de mais ninguém... Bem feito, muito bem feito!...
Andava-lhe na cabeça um enxame de idéias; palpitava-lhe o coração desordenadamente; queria, mas não tinha coragem de falar a Evaristo numa mudança breve, numa retirada escandalosa, que podia suscitar desconfiança no espírito dele. Era preciso ir pouco apouco fugindo à tentação daquele homem, evitando-o, mostrando-se fria, de uma frieza de estátua, cada vez que ele se aproximasse dela, até ir-se embora da Corte com Evaristo.
E enquanto Adelaide pensava nessas coisas, sem nada dizer ao marido, o bacharel premeditava o arrasamento das instituições, ao mesmo tempo que lia, com avidez, os artigos revolucionários d'A Folha.
A jovem senhora estava emagrecendo, mas emagrecendo como quem sofre uma lesão oculta, uma doença profunda na parte mais delicada do organismo. Já era débil, naturalmente franzina, com olheiras sintomáticas de anemia, o pescoço esguio, o nariz afilado, a voz cansada, de um timbre melodioso, quase a extinguir-se, uma passividade meiga aos olhos; mas agora, tudo isso como que ia tomando uma expressão visivelmente mórbida aos olhos de toda a gente, menos aos de Evaristo, que os tinha voltados para a política e para os republicanos.
— Não me achas magra? — perguntava ela ao bacharel.
— Não, a mesma coisa... — dizia ele fitando-a. — Sempre foste magrinha.
Até que uma tarde, após o jantar, Adelaide, em conversa com Evaristo, disse-lhe:
— Oh! quem me dera voltar à província!
O bacharel encarou-a.
— Homessa!
— É o que te estou dizendo...
— Então já aborreceste o Rio?
— Já.
— Pois admira... Inda não há muito tempo falavas com entusiasmo na Rua do Ouvidor e nos bailes do Cassino...
— É verdade, mas.
— Mudaste de idéia como o Valdevino Manhães de política...
— Isso mesmo. Há dias que penso doutra forma. O Rio de Janeiro é essencialmente egoísta e eu não me coaduno com a vida que temos vivido nele... De repente apoderou-se do meu espírito uma nostalgia, uma tristeza mesclada de apreensões e de desânimo... um aborrecimento das coisas que me cercam... Prefiro viver só, bem longe desta sociedade... lá no fundo da minha província, em Coqueiros, como outrora...
— Estás eloqüente! — exclamou Evaristo, interrompendo a esposa.
E logo:
— Mas vem cá: desfeitearam-te? trataram-te com menos polidez?
— Nada... todos me tratam muitíssimo bem... D. Branca é um anjo... o Sr. Furtado um cavalheiro irrepreensível... todos, enfim, com quem nos damos, são umas belas pessoas...
— E então, filha? Dir-se-ia que tens lido os romances de Georges Ohnet ou os folhetins de Montepin... Se a questão é de casa, se não estás contente aqui — mudemo-nos: sempre foi este o meu desejo.
Debruçados ambos no peitoril da janela, iam assim confidenciando baixo, àquela hora crepuscular, frente para a perspectiva sombria das montanhas que se recostavam numa mudez piramidal e tenebrosa, como dorsos de dromedários fugindo nos longes de um deserto...
Havia pausas curtas no diálogo.
O cemitério dava uma nota ainda mais triste à paisagem, àquele recôncavo da natureza, cuja melancolia tinha o sainete fúnebre da morte...
O céu, porém, o grande céu, numa impassibilidade mística, sem a dobra ou a franja de uma nuvem, sem o brilho de uma estrela precursora, vazio e desolado, era como a retratação simbólica do Nirvana oriental para onde correm as almas dos eleitos de Buda... — misterioso, inexpressivo e assim mesmo belo!
Uma claridade argentina e deliqüescente, qual o reflexo para o alto de uma cidade iluminada, emergiu como os pródromos de uma aurora boreal, no liso descampado que o sol ia deixando.
— Olha aquilo! — exclamou o bacharel, tocando no ombro de Adelaide.
Ela volveu o rosto à esquerda, para o lugar indicado, e, sem se aperceber de que já era noitinha, viu o medalhão esbraseado da lua no nascente, carregando toda a tristeza dos desiludidos, toda a inconsolável amargura dos infelizes, cujo olhar se embebera nele desde o princípio do mundo.
E a esposa de Evaristo não teve uma palavra de admiração, um movimento de surpresa: disse simplesmente, quase inconscientemente:
— É a lua...
E, com a face na mão, esperou que o astro bendito dos poetas lhe trouxesse algum remédio às dores, que eram muitas e profundas...
Mas Evaristo continuou, distraindo-a:
— Tu estás nervosa, Adelaide, isso é nervoso, a moléstia da moda... Vamos procurar casa, que é o verdadeiro...
— Não, não! — interrompeu ela com um arzinho de amuo. — Daqui, de Botafogo, para a província... para outro lugar... fora do Rio de Janeiro.
— Com efeito! Muito ódio tens tu ao Rio de Janeiro!
— Dizes bem: muito ódio...
— Queres, então, decididamente, voltar à doce vidinha de Coqueiros! Pois olha, não te gabo o gosto. O Rio de Janeiro sem o imperador e sem os preconceitos da monarquia, o Rio de Janeiro tal qual sonham os bons republicanos, há de ser uma coisa única! Palavra de honra como eu não desejava abandonar esta terra, enquanto não visse um homem do povo governando o Brasil!
— De forma que, se os médicos me aconselhassem uma retirada...
— Isso é outro caso, filha; a saúde em primeiro lugar. Mas não me consta que estejas tão doente assim...
— Pois estou... estou muito doente, muito apreensiva, muito nervosa... já não acho encanto em coisíssima alguma... Vem-me uma vontade de chorar, uma tristeza no coração...
Evaristo imaginou logo que se tratava de um primeiro filho. Oh, o seu ideal doméstico: um filho! Ouvira falar nos múltiplos sintomas da gravidez, nas primeiras manifestações desse estado... e o nervoso de Adelaide, aquela tristeza, aquela morbidez, não o enganavam...
Era pai.
Um sorriso complacente arqueou-lhe os lábios; todo ele sentiu-se invadido por uma onda de alegria e de ternura paternal. Já não estava ali o republicano exaltado, o homem feroz, o político sem entranhas, o abutre dos monarquistas e dos reis! A simples idéia de que em breve estaria com um bebê ao colo, nascido do seu amor, um novo e legítimo representante dos Holanda, fazia-o outro homem, calmo, generoso, inclinado ao perdão, amigo dos seus inimigos.
Adelaide compreendeu a ilusão do marido e sorriu também:
— Não... não é o que tu pensas...
— Não é! Ora, se é...
— Juro-te!
Mas ele, na sua embriaguez, no seu enleio, na extrema felicidade que o assaltava, respondeu:
— O futuro nos dirá...
Com uma voz tão firme, tão convencida, que a esposa, mais meiga do que nunca, tornou a sorrir e beijou-o carinhosamente.
O luar banhava as montanhas com essa claridade misteriosa que faz sonhar em coisas vagas, intangíveis, etéreas, que a linguagem humana não define. Todos os objetos que a vista alcançava pareciam diluir-se, esgazear-se numa neblina luminosa e transparente. Embaixo, na rua, os lampiões, espaçados, morriam de abandono e de tristeza.
Evaristo acendeu o gás, porque — "aquilo estava cheirando a ruínas de Pompéia em noites de luar..."
— Ora, até que enfim! — dizia ele, riscando o fósforo. — Até que, enfim, o muito digno Sr. Evaristo de Holanda acertou no alvo!