Atalhou a menina o ímpeto a Jão, arrojando-se-lhe em frente, e cobrindo com o talhe delgado o corpo de Miguel. Seu olhar cintilante trespassou o olhar fero do capanga como a lâmina de um estilete cravando uma couraça.
— Vai embora! disse ela com império; e a voz parecia ranger-lhe nos lábios pálidos.
Foi a pupila inflamada e sanguinária do assassino, a que abateu-se.
Recolhendo o passo, quedou-se um instante perplexo, absorto por uma luta que se renhia dentro, procela a subverter o pélago insondável dessa consciência.
Rompeu-lhe do seio uma sublevação contra o poder misterioso e incompreensível, que lhe agrilhoava com um fio de cabelo as pujanças terríveis do coração, até aí indomável e sedento como a sanha do tigre.
Levantou os olhos carregados de cólera:
— Já! impôs-lhe a menina, que pressentira a reação, e como da primeira vez, a retalhava com o gume de seu olhar.
Ainda hesitou o facínora; mas afinal, vencido por ignoto poder, curvou a cabeça, e de um arranco visível afastou-se vagarosamente com um passo tão pesado que lhe custava a arrancar do chão a palma do pé. Duas ou três vezes, antes de encobrir-se na alta capoeira, voltou a cabeça; mas encontrava os olhos cintilantes da menina; e, apesar do grande esforço, vergava ante a inflexível repulsa.
— Foi-se! disse Miguel.
O rapaz assistira imóvel à rápida cena, partido entre o pensamento da defesa e a admiração pela coragem da linda companheira, que afrontava-se com o terrível facínora.
Vendo este sumir-se no mato, escapara-lhe dos lábios aquela exclamação de surpresa e acompanhou-a logo um gesto que não era de vã ameaça, mas de firme resolução.
— Algum dia nos havemos de encontrar!
— Que lhe fez ele? perguntou a menina a rir.
Em seu lindo semblante já não restavam traços da comoção que nela produzira a cena anterior. Como a onda cristalina, que turva um instante a asa negra da borrasca, e logo após reflete a bonança do céu, era seu olhar sereno e meigo.
Ninguém diria que nesse corpo mimoso dormia a alma que se revelara poucos momentos antes, e parecia espedaçar o frágil e delicado invólucro; ninfa celeste a romper a argila de sua formosa crisálida.
— Que me fez, Inhá? repetiu Miguel surpreso da pergunta.
— Foi você quem buliu com ele, que ia seu caminho bem descansado.
— Para a tocaia!
— De quem? interrogou a menina assustada.
— Sei lá! Quando o bugre sai da furna, é mau sinal: vem ao faro do sangue como a onça. Não foi debalde que lhe deram o nome que tem. E faz garbo disso!
— Então você cuida que ele anda atrás de alguém?
— Sou capaz de apostar. É uma cousa que toda a gente sabe. Onde se encontra Jão Fera, ou houve morte ou não tarda.
Estremeceu Inhá com um ligeiro arrepio, e volvendo em torno a vista inquieta, aproximou-se do companheiro para falar-lhe em voz submissa.
— Mas eu tenho-o encontrado tantas vezes, aqui perto, quando vou à casa de Zana, e não apareceu nenhuma desgraça.
— É que anda farejando, ou senão deram-lhe no rasto e estão-lhe na cola.
— Coitado! Se o prendem!
— Ora qual. Dançará um bocadinho na corda!
— Você não tem pena?
— De um malvado, Inhá!
— Pois eu tenho!
— Ah! você fala com o Bugre e até manda nele, como se fosse um negro cativo.
— Pois então!
— Mas por que é que este demônio que não faz caso de ninguém, e até mata as crianças, sofre tudo de Inhá, como ainda há pouco? Por que é?
— Não sei, Miguel! disse a menina com ingenuidade.
— Estou vendo que você tem algum patuá, como dizem as pretas da fazenda.
— E tenho mesmo! Olhe! Aqui está! exclamou a menina a rir-se, mostrando um bentinho que tirou do seio, onde o trazia com uma cruz, preso a um cordão de ouro.
— Então é encanto; não há dúvida, replicou Miguel sorrindo.
— E eu digo que não.
— Ora, todos sabem!
— Ninguém sabe, nem eu mesma, só Deus; mas eu cuido uma cousa.
— O quê?
— É porque eu não tenho medo dele.
— Qual!...
— Nenhum; nenhum!
— Mas você ficou mais branca do que uma cera, que eu bem vi.
— De raiva só! respondeu a menina com expressão.
Tinham os dous companheiros chegado ao lugar, onde a vereda que seguiam atravessava um carreador. Perto dali ficava a tronqueira de bater, a qual dava entrada às terras de uma fazenda, cercadas pelo fosso largo e profundo, que serve para resguardar a cultura contra o gado daninho.
Inhá, que de uma corrida alcançara a tronqueira, subiu de salto pelas travessas, como faria se fossem os degraus de uma escada, e sentou-se na última bem concha de si. Levantando então a aldraba de ferro, e empurrando com o pé a cancela, começou a balançar-se com um prazer infantil.
Parado em meio do caminho ficara Miguel contemplando-a com uma expressão de contrariedade. Parecia afligir-se de ver sua graciosa companheira fazer-se criança, e trocar pelas afoutezas de um traquinas as cintilantes vivacidades da mocinha faceira.
Sentia ele dentro em si uma ânsia incompreensível, qual tem-na o artista olhando o toro de mármore de que seu cinzel vai criar uma estátua. Mas essa, que lhe vive e palpita n'alma, ainda o mármore não a recebeu, e quem sabe se poderá ele nunca moldá-la como a desenhou a imaginação.
Tal era Miguel ante aquele esboço da mulher que sonhava e, já alguma vez, entrevira em realidade, mas como uma luz efêmera, quase instantânea, bruxuleando entre as cismas de seus passeios solitários pelos campos. Os mesmos ímpetos do artista, cortados pelo desânimo, tinha-os ele nos momentos em que via, como agora, transformar-se de repente a fada gentil de seus sonhos em um capetinha de mil pecados.
Sua alma refrangia-se, ferida pela decepção; e por isso, desviando a vista da menina, atravessou o carreador e trilhou a vereda que embrenhava-se pela mata fechada, a pequena distância daí.
— Psiu!... Onde vai? perguntou Inhá surpresa.
Miguel parou.
— Já se esqueceu do caminho? continuou ela a rir. É por aqui!
— O meu não! respondeu o rapaz.
E partiu.
Nesse momento soou a distância um agudo assobio, e Inhá viu resvalar entre a folhagem, à orla da mata, um vulto que lhe pareceu Jão Fera.