Advertido pela pêndula, Luís Galvão consultou seu relógio de algibeira e ergueu-se:

— São horas!

Até àquele momento nutrira D. Ermelinda uma vaga esperança, que ela mesma não podia explicar. Lembrava-se que um pequeno acidente qualquer podia estorvar ou pelo menos adiar a viagem. Vendo chegar a despedida, empalideceu:

— Se você aflige-se dessa maneira, Ermelinda, não vou. Faz-me grande desarranjo, como sabe; mas não tenho ânimo de deixá-la tão sobressaltada.

— Confesso que esta emoção faz-me mal; já não me sinto boa.

— Então fico: está decidido.

Uma sombra de tristeza perpassou rapidamente pelo semblante de Linda; todavia não escapou ao olhar da mãe, que adivinhou a causa dessa mágoa de moça.

— Mas, Luís, esta viagem é necessária, e, no fim de contas, meus sustos não têm razão de ser. Você precisa concluir esse negócio; e Linda ficará queixosa se não tiver os presentes prometidos.

— Eu, mamãe? exclamou a menina com terna exprobração. O que eu desejo é vê-la sempre contente.

— E não é um contentamento fazer-te feliz? Já fui moça como tu; nessa idade a ventura é uma flor, uma fita. Só depois se compreende o que ela vale, e o que ela custa, minha filha. Não te envergonhes dessa faceirice. Quem há de tê-la senão tu? Deus fez as estrelas para brilharem.

— Então o que decidem? perguntou Luís Galvão.

— Vá; eu lhe peço.

— Por minha causa, não! contestou Linda.

— Pela minha, disse D. Ermelinda.

Calçadas as luvas e feitos os últimos aprestos, despediu-se o viajante da família e montou a cavalo.

No momento de abraçar o marido, D. Ermelinda com disfarce apalpou-lhe o peito, e ficou mais tranquila percebendo o revólver no bolso do casaco. Não obstante, custou-lhe muito essa despedida; seus vagos terrores se alvoroçaram de novo, e foi preciso grande esforço para dominar-se.

Entretanto Luís Galvão, esporeando a rosilha, depois que disse o último adeus com a palavra e o gesto, passou a cancela do terreiro. Acompanhava-o de perto, a meio-corpo da cavalgadura, o camarada Mandu; adiante ia o pajem para abrir as tronqueiras; e entre ele e o viajante trotava o baio, solto, mas de todo arreado e pronto para o revezo.

— Logo hoje é que seu pai leva um camarada só.

— Por que, mamãe? perguntou Linda.

— O Pereira adoeceu, o outro, ninguém sabe onde anda.

— Se mamãe quer, eu acompanho meu pai, disse Afonso fazendo menção de dirigir-se à cavalariça. Em um instante o alcançarei.

— Não, não Afonso!... acudiu vivamente a senhora, como se receasse que além do marido lhe roubassem também o filho.

Do terrado onde estavam, na porta da entrada, já se não viam os viajantes, ocultos pelo arvoredo. D. Ermelinda, antes de entrar, voltou-se para os filhos:

— Vão passear!

— E mamãe fica só?

— Preciso descansar um pouco até a hora do almoço.

— Sente alguma cousa, minha mamãe?

— Nada, fadiga apenas. Até logo.

— Quer ir, Afonso?

— Se você quiser, Linda!

— Vão; a manhã está bonita, insistiu a mãe.

D. Ermelinda por este meio tratava de afastar os filhos, cuja solicitude dispensava nesse momento, pela razão de os não afligir comunicando-lhes a tristeza e inquietação que a assaltava com dobrada força.

Apenas eles a deixaram, subiu apressadamente ao mirante para acompanhar com os olhos ao marido, até a volta que fazia o caminho no canto da tiguera e onde se perdia de todo a vista da casa.

Os viajantes, que já estavam a poucas braças dali, pararam de repente, e depois de pequena demora retrocederam apressados. Surpresa com o incidente, D. Ermelinda deu graças a Deus daquela volta inesperada, que lhe restituía o marido, a quem por cousa alguma deixaria mais partir.

A angústia que sofrera naqueles poucos instantes, os pensamentos cruéis que lhe crivavam a alma nesse breve trato, não os sentira ela talvez em anos de sua vida. Suplicaria a seu marido que desistisse da viagem; e ele havia de atendê-la, ou então arrastá-la abraçada a seus joelhos.

Aproximavam-se os viajantes; repassaram a cancela e afinal pararam em frente à casa, onde Luís Galvão apeou rijo.

— Que foi? perguntou D. Ermelinda que descera do sótão a encontrá-lo.

— Ora, respondeu o fazendeiro a rir, não sei onde pus as amostras de Linda com a lista das encomendas.

Outra vez D. Ermelinda achou em si a força para reagir contra seus imaginários terrores. Esse coração de mãe sacrificava às inocentes alegrias da filha o seu sossego; é uma banalidade sublime, que se encontra por aí, a cada canto, e de que já ninguém se ocupa.

Correu Luís Galvão ao gabinete à busca dos objetos esquecidos; e enquanto a mulher ajudava-o de seu lado na pesquisa, abriu ele a medo o segredo da secretária e tirou um papel, que rápida e furtivamente escondeu no bolso.

Era este o motivo real da sua volta; o outro não passava de pretexto. Apenas teve Galvão seguro o papel em um bolso, que tirando à sorrelfa um pequeno embrulho do outro, exclamou:

— Aqui está!

— Aonde achou?

— Dentro desta caixa de charutos. Só eu era capaz de achá-lo. Foi quando enchi a carteira.

Abraçando a mulher, e beijando-a na face, de novo pôs-se o fazendeiro a caminho; e desta vez ia pensativo, quase triste. Murchara a flor da jovialidade, que se expandia momentos antes tão fresca em seu nobre semblante, e a alma franca e generosa sempre a espelhar-se em seu olhar, dir-se-ia que se acanhava.

O pequeno incidente da volta viera toldar aquele sentimento que mais ou menos é infalível em todo o coração por magnânimo que seja, como da ânfora onde por muito tempo se guardou o vinho puro e generoso, há sempre lia no fundo.

Luís Galvão tinha um segredo em sua vida, talvez uma falta; e o ocultava de todos, mas especialmente da mulher. Ver-se humilhado perante aqueles a quem se ama, e cuja estima se alcançou, não pode haver maior suplício para o homem de brios.

O esquecimento do papel, que sem dúvida continha revelação ou referência do segredo, e a necessidade de recorrer a uma simulação para ocultar o verdadeiro motivo de sua volta; esses pequenos embustes sem consequências, e que talvez a outros nem mais lhe roçassem na memória, a ele, exempção e franqueza personificadas, o estavam remordendo interiormente.

Chegaram afinal os viajantes ao canto da tiguera. Havia, junto a um copado guaratã, que lhe dava sombra, uma ponte de madeira, lançada sobre as altas ribanceiras de um córrego, que regava parte das terras lavradas.

Aí estava a última tronqueira da fazenda.

Voltou-se Luís Galvão para enviar um adeus à mulher, que lhe acenava com o lenço, e desapareceu.