Na primeira surpresa do grito inesperado, tiveram os companheiros de passeio um ligeiro sobressalto; mas rápido se desvaneceu.

Tornaram pois à conversa, indiferentes ao que passava daí distante; apenas Berta, separando-se do grupo, subiu a correr a assomada da colina, curiosa que estava de saber donde partira o clamor.

— Gosta muito de caçar? perguntou Linda com certo enleio a Miguel como se não o conhecesse de muito tempo e a seus hábitos.

Mas quem não sabe que ternos segredos e confidências recônditas se insinuam muitas vezes em uma pergunta banal, feita por lábios amantes? Não estava porventura transpirando das palavras da moça um queixume pela preferência dada a uma distração que ela não partilhava?

— É um meio de passar o tempo, respondeu Miguel.

— Não lhe diverte mais ler? Mamãe deu-me um livro mui lindo, que eu acabei ontem. É a Cabana Indiana. Eu lhe... Mano podia emprestar-lhe.

— Já li, disse simplesmente Miguel.

— Não é tão bonito?

— Muito.

— Eu queria ter uma cabana assim, continuou Linda.

Miguel sorriu-se da inocente fantasia da moça, e ela, rastreando em seu espírito o fio daquele pensamento, sem aperceber-se de que podiam perscrutar-lhe o rosto, voltou-se de novo para o moço.

— O senhor não deseja formar-se?

— Era o meu sonho! replicou Miguel vivamente; e logo retraindo-se ao habitual sossego: — Mas para que pensar nisto?

— Mano vai no fim deste ano. Podiam ir juntos; seriam dous camaradas para se ajudarem.

— Para viver em São Paulo e lá estudar, é preciso ter dinheiro; e esse me falta, disse Miguel em tom de gracejo.

— Papai lhe empresta.

— Não duvido; mas o difícil é pedir-lhe eu.

— Por que razão?

De boa vontade, riu-se Miguel da insistência da menina:

— Quem nada tem de seu, não pede emprestado; salvo quando não pretende pagar.

— É verdade!

Miguel recobrara o bom humor que perdera um instante com os motejos de Berta; e divertia-se com os projetos que Linda formava a seu respeito. Não era ele desses que lançam à conta dos ricos e fartos a culpa de sua pobreza; e se despeitam contra o mundo da ingratidão da fortuna. Aceitava sua condição como um fato natural e com certa filosofia prática, rara em mancebos.

— Pensando bem, é melhor assim, disse ele a Linda; se eu me formasse, teria ambições que não são para mim, e viria talvez a sofrer grandes dissabores; enquanto que ficando no meu canto, viverei tranquilo junto daqueles a quem amo. Para que há de a gente afligir-se por cousas que não valem senão dissabores, como vejo tantos fazerem por aí?

Afonso tinha-se apartado, e dando volta ao outeiro preparava-se para pregar em Berta uma das peças costumadas. Já ele se esgueirava sorrateiramente entre a folhagem para tomar de surpresa a menina, quando esta que estivera a olhar na esplanada alguma cousa que lhe chamava a atenção, desceu a correr para a figueira, e veio interromper o colóquio.

— Onde vai o Sr. Galvão?

— Papai foi a Campinas, onde pretende se demorar alguns dias, respondeu Linda.

— Você não me disse nada.

— Só ontem ele resolveu e contra a vontade de mamãe que ficou tão assustada.

— Por quê? perguntou Miguel.

— Tem-se falado de esperas que andam fazendo aqui perto, e ontem apareceu junto da fazenda um homem muito mau.

— O Bugre! disse Afonso.

— Jão Fera? exclamara Miguel trocando um olhar com Inhá.

— Isso mesmo.

Berta cobriu-se de uma lividez mortal, e sua mão trêmula constringiu o seio como para reter o coração que lhe fugia.

— Eu também, prosseguiu Linda sem notar a perturbação da amiga, estou bem assustada. Não quis mostrar para não agoniar mamãe ainda mais do que ela estava; porém quando me lembro que papai tem de passar por esse lugar da Ave-Maria fico fria e toda trêmula.

— Ora, menina, deixe-se de faniquitos, replicou Afonso a rir. Senão chamo já o tal Jão Fera para tirar-lhe o susto. É como se faz com as crianças, para não terem medo do calhambola.

— Esteja sossegada, que nada há de acontecer; eu lhe prometo! disse Miguel.

— Obrigada! Mas papai demorou-se muito. Para a hora que saiu já devia estar bem longe.

Fazendo este reparo dirigiu-se Linda ao outeiro para observar o caminho. Miguel a foi seguindo, esforçando por manter-se de ânimo sereno a fim de não redobrar o susto da moça. Entretanto não deixava ele de estar inquieto e impressionado, recordando-se do encontro que tivera há pouco tempo com o feroz capanga, e sobre o qual julgara prudente calar-se.

— Agora é que passou a ponte! acudiu Linda com a satisfação de ver o pai, e a preocupação do motivo daquela demora.

Ela não sabia do incidente da volta por causa das amostras; mas era ele tão natural que ocorreu a Miguel.

— Talvez tivesse esquecido alguma cousa.

— Há de ser isso. Vamos, mano, que são horas.

— Onde está Berta? perguntou Afonso que a procurava desde alguns instantes.

— Escondeu-se conforme o costume para fazer tutu! respondeu Miguel.

— Berta! chamou Linda.

— Aqui não está. Já corri tudo.

— Dê lembranças a ela, Miguel: não posso esperar; já é tarde.

— Aí adiante a encontra de emboscada no caminho, Linda.

— Se eu a pilho! disse o Afonso apertando a mão de Miguel.

Os dous irmãos atravessaram a capoeira, espreitando por entre as folhas, mas não viram sombra de Berta.

Nesse momento soou de novo o mesmo estranho clamor que antes se ouvira; mas desta vez gania a voz com tal ímpeto e frenesi que estrangulava-se.

— Til! Til! Til!...

Na roça estavam os pretos no eito, estendidos em duas filas, e no manejo da enxada batiam a cadência de um canto monótono, com que amenizavam o trabalho:

Do pique daquele morro
Vem descendo um cavaleiro.
Oh! gentes, pois não verão
Este sapo num sendeiro?


Adubavam o mote com uma descomposta risada e logo após soltavam um grito gutural:

— Pxu! Pxu!

Têm os pretos o costume de entressacharem nas toadas habituais, seus improvisos, que muitas vezes encerram epigramas e alusões. Bem desconfiava, pois, o feitor de que a tal cantiga bulia com ele, e o sapo não era outro senão um certo sujeito bojudo e roliço, de seu íntimo conhecimento; mas fingia-se desapercebido da cousa.

Quando passaram os dous irmãos, a um sinal do cabeça de eito, os pretos fizeram um floreio de enxadas, suspendendo-as ao ar com a mão esquerda, e com a direita pediram a bênção.