Era pela volta das oito horas.
Nhá Tudinha entrava e saía, andando de um lado para outro, na labutação do costume. Não por necessidade, que só por gênio, vivia ela nessa contínua lida caseira desde que amanhecia até o escurecer.
Tinha essa mulherzinha baixa e rolha tal prurido na pele que não podia estar um momento sossegada. Por força que se havia de ocupar com alguma cousa; e para que lhe rendesse a tarefa, muitas vezes desfazia o que já estava pronto, a fim de ter o gosto de arranjar de novo.
Nunca sentia-se tão feliz e contente como nos dias em que a apoquentavam de trabalho. Correr daqui para ali, revolver os cantos da casa, abrir e fechar portas, acudir da varanda à cozinha, e dar vazão a tudo; nisso consistia o seu maior prazer neste mundo.
Quem a visse naquela dobadoura da manhã à noite, ficaria admirado do seu ar lépido e agudo; pois decerto não se podia esperar semelhante volubilidade naquele corpo rechonchudo, com suas perninhas curtas e socadas.
Achava-se então nhá Tudinha em uma de suas boas vezes. O São João estava à porta; e ela, que tinha, e com muita razão, o seu garbo de doceira afamada, por costume antigo se pusera na obrigação de mandar em dias de festa mimos feitos por suas mãos, no que estava o chiste, às pessoas de amizade, cujo rol começava necessariamente pelo compadre Luís Galvão, padrinho de Miguel.
Por isso já de véspera andava ela às voltas com o alguidar e o forno.
Sentada na varanda sobre uma esteira e rodeada de todos os petrechos, estava mui atarefada em anaçar ovos e amassar fubá mimoso para fazer as broas saborosas e os bolos de milho que ninguém preparava como ela.
Ajudava-a neste mister a Fausta, preta de meia-idade. Eram, essa escrava e a casinha, os restos da abastança de que outrora gozara em vida de seu finado marido, Eugênio de Figueiredo, companheiro e amigo de Luís Galvão. Más colheitas e juros enormes tinham consumido os modestos haveres.
Quando estava nhá Tudinha mais embebida em fazer um passarinho de biscoito, de repente lho arrebataram sutilmente da mão, e uma voz brejeira que arremedava tanto quanto podia o abocanhar de um cãozinho, gritou:
— Nhau!...
Voltou-se a rechonchuda mulherzinha debulhando-se em uma risada gostosa, porque adivinhava o autor da travessura, que não era outra senão a ardilosa da Berta, em quem ela achava uma graça imensa. Não fazia a menina um trejeito, nem dizia uma facécia, que a viúva não se desfizesse em gargalhadas. Era a efusão de sua ternura pela pequena. O coração de nhá Tudinha só tinha para exprimir o amor dous vocábulos, o riso, ou então o choro nos dias de tristeza e luto.
— Ai, menina!... Quiá!... quiá!... quiá!... Já se viu, que ladroninha?...
— Uh! pumbu!... dizia entretanto Berta, beijando o biquinho da rola de biscoito; e acrescentou voltando-se para a viúva. — Quer ver como voa?
Começou então a traquinas a fazer voar o biscoito, no meio das cachinadas de nhá Tudinha, que de tanto se estorcer, afinal arrebentou o cós da saia.
Cansada Berta, ou antes aborrecida daquele brinco infantil, e curado o frouxo de riso da viúva, levantou-se esta para o almoço, que já estava posto à mesa, e frio de esperar.
— Que mãezinha má! tornou Berta com faceirice. Fez tantos biscoitos e não me guardou um só!
— Pois então! Não me deixaram sozinha? Cuidei que não voltavam mais hoje. E o almoço esfriando!
— Bem bom! Não queima a gente!
— E o outro?... perguntou a rir a viúva. Por onde anda?
— Quem sabe se perdeu-se?... Coitadinho do Miguel!...
— Ai, que já não posso! Quiá, quiá, quiá!... Mas você, aposto que foi ver a Zana!
— Que tem?
— Eu fico mesmo tão assustada quando Inhá vai para aquelas bandas! Não é graça, não!
— Por quê?... Tem medo que o tutu me pape? Ele que se meta em bulir comigo e verá! Olhe, mãezinha, eu agarro-o pelas orelhas, assim; e meto-lhe um cipozinho, zás, zás, zás, que ele vai por aí gritando, ui, ui, ui!...
Nova gargalhada de nhá Tudinha, que já sentada no banco junto à mesa foi obrigada a erguer-se para apertar as ilhargas temendo estalassem com as embigadas que lhe fazia dar o frouxo do riso.
A esse tempo chegara Berta à porta e chamou o Brás, que se deixara ficar no meio do quintal, a alguns passos da casa, com os olhos fitos no lugar onde sumira-se o vulto da menina a quem ele acompanhava.
Depois que Berta com seu desvelo e afago dissipou os violentos paroxismos da convulsão em que se estorcia o rapaz, e foi-se a crise acalmando, procurou ela adormecê-lo, cerrando-lhe docemente as pálpebras.
Da posição em que estava junto à tapera da Zana, descobria-se uma volta da senda tortuosa que enredava-se pelas faldas ensombradas de um serrote. Desde algum tempo seus olhos voltavam-se a espaços naquela direção, e agora, amiúde, com certa impaciência.
Vendo o rapaz quase adormecido, repousou-lhe a cabeça em uma leiva de grama, e adiantou-se pelo trilho além, parando às vezes, para depois continuar.
Havia andado já grande extensão, quando reparou que fazia-se tarde; e, malograda sua esperança retrocedeu ao lugar onde tinha deixado o Brás. Este porém já ali não estava; apenas se afastara a menina, que ele abrira os olhos, e agachado lhe seguira sorrateiramente e de longe os passos.
Quando viu o rumo que ela tomava, um movimento de ira escapou ao mostrengo, que atirou ao vento os murros das punhadas convulsas, arquejando de raiva. Rastejou então como um reptil, por meio da relvagem, e sumiu-se nas entranhas da terra.
Metera-se ele em uma espécie de fojo que tinha recentemente praticado em um barranco atufado de junças, e a cuja borda passava o trilho. Aí cavava o chão, com as unhas aduncas, e como tomado de um frenesi; até que percebeu, por uma repercussão da cova, o passo de Berta que voltava.
Vendo-o com as mãos cheias de terra, e a roupa suja de arrastar-se pelo chão, a menina o ralhou brandamente e conduziu-o a casa onde acabava de chegar.
— Venha almoçar! disse Berta da porta.
— Não quero!
Esta resposta do menino, deu-a ele com sua fala particular, que era uma rouca explosão da voz, despedida em ásperas e bruscas articulações, como o rugido de um animal, ou a blateração de um surdo-mudo.
A quem não estivesse muito habituado com essa pronúncia desabrida e selvagem, seria impossível discernir de pronto os vocábulos, pela velocidade com que eram arremessadas as sílabas incisas e truncadas.
Aproximara-se nhá Tudinha com a curiosidade de ver a quem falava Berta, e como reconhecesse o menino, escapou-lhe um gesto de visível repugnância. Mas um olhar da menina bastou para apagar essa repulsa, e convertê-la em agasalho.
— Ande, Brás, disse a viúva com afabilidade. Tome uma cousa que lhe guardei.
Desta vez nem se deu o rapaz ao trabalho de responder com a voz. Fez uma careta má a nhá Tudinha, e voltou-lhe as costas.
— Brás!...
Nesse monossílabo proferido por Berta, com sua voz sempre doce e melodiosa, percebia-se uma vibração íntima que destoava no meio daquela harmonia. Era como o brandimento da corda que estalava, ou como o áspero triscar do diamante no vidro.
Voltou-se Brás e veio dócil e humilde, acompanhando a indicação do gesto de Berta, colocar-se em frente dela, que, depois de lavar-lhe as mãos, e cortar-lhe as unhas, o sentou a seu lado no banco da mesa. Aí tomou o prato, que lhe serviu ela, e comeu com uns modos comedidos, embora um tanto hirtos, que ia copiando da moça. Ninguém diria fosse este o mesmo lambaz, que na mesa de Galvão metia o queixo na xícara, deixava na toalha uma roda de sobejos, e lambuzava a cara de sopa e manteiga.
Foi rápido o almoço.
Nhá Tudinha não tirava o sentido do forno onde assava um bolo de mandioca puba: além de que de prova em prova já petiscara seus biscoitos bons. Berta, essa comia como um passarinho, aos beliscos. Antes de sair de casa pela alvorada, tomara café; e de caminho trincara as roscas de goma que levava para Zana.
O Brás também não tinha fome. O constrangimento, em que o punha a presença da menina e a sua fascinação, deviam de embotar-lhe o apetite insaciável, com que de ordinário devorava quanto lhe deixassem.