Em uma das escapulas que fez o Brás da escola, sucedeu encontrá-lo Berta, acocorado, a soprar as palmas inchadas e rosnando contra o Domingão, a quem ameaçava de longe com murros ao vento.
Consolou-o ela e o levou consigo até a casa para deitar-lhe panos de aguardente nas mãos e distraí-lo da exasperação em que o via.
De todas as pessoas que Brás encontrara nas Palmas, fora Berta a única de quem não o afastara o seu natural bravio, nem a aversão instintiva que lhe inspirava toda criatura humana com quem se achasse em contato. A gratidão, que logo mostrara pelo modo compassivo e meigo da menina, redobrou com aquele incidente.
Quis Berta, para livrar o pobre rapaz dos bolos e repelões do mestre, ensinar-lhe todas as manhãs a lição; e nesse desígnio preparou-lhe uma carta. Continuaram as cenas da escola; e repetiram-se as visagens e gaifonas à vista do til; porém desta vez em maior escala, pela liberdade em que estava o parvalhão do rapaz. No seu afã de imitar o sinal, que tanto lhe dera no goto, virava cambalhotas e corcoveava pela grama.
Trabalhava a enjeitadinha com toda a meiguice para aplicar às letras o boto engenho daquele órfão, ainda mais que ela desamparado da fortuna. Vão esforço, em que, não obstante, porfiava com uma perseverança incrível naqueles tenros anos, e em tão humilde condição.
De seu lado também não descoroçoava o Domingão de meter o abecê nos cascos do Brás, ainda que para isso fosse necessário abri-los de meio a meio:
— Burro! gritava ele com uma voz de trompa, esgrimindo a férula. Ou te racho o quengo com este bodoque, ou pões em achas o guaratã!...
Afinal teve Berta uma inspiração. Desenganada de obter que o menino pronunciasse ao menos o a, deixou-o lançar-se aos costumados esgares e gambitos. Observando então o pobre sandeu com dó profundo, pensava ela que Deus, em sua infinita misericórdia, concedia a essa alma tão atribulada e sempre confrangida por terrível angústia, um breve instante de alegria.
Nisso o Brás pulando como um boneco de engonço, passava a ponta do dedo mui de leve pelas sobrancelhas negras de Berta, por seus lábios finos, pela conchinha mimosa da orelha; e, apontando alternadamente para o til na carta do abecê, repinicava as risadas e os corcovos.
Iluminou-se de súbito o coração de Berta. A impressão estranha que no idiota produzira aquele insignificante objeto, e cuja causa escapava à sua compreensão, não era a trepidação de um raio, tênue embora, de inteligência, que filtrava daquele cérebro denso como o frouxo bruxuleio de uma estrela através do nevoeiro?
A camada profunda que soterrava o espírito de Brás, tinha um interstício por onde coava-se alguma chispa, que rareava as trevas carregadas dessa noite sem manhã. E por singular coincidência o primeiro balbucio da inteligência bota se dirigia a ela, como o primeiro vagido da criancinha no berço chama pela mãe.
Ninguém sabe o que passou então no íntimo de Berta, que tinha suas venetas, e de quem se referiam casos que a gente velha do lugar, e especialmente as pretas da fazenda, atribuíam a uma influência misteriosa e sobrenatural.
Associando-se à lembrança original do idiota, disse-lhe a menina, ajudando a palavra com mímica expressiva, e apontando para a carta.
— Eu sou til!
Esteve Brás um instante pasmo e boquiaberto, sem compreender, apesar da ânsia com que labutava o seu obtuso engenho. Até que afinal bateu palmas de contente, e deitou a pular, regougando a sua parva risada.
— Eh!... eh!... eh!... Berta, umh!... Berta, umh!...
Daí em diante aquele sinal, que para o idiota era o símbolo da graça, da gentileza e do prazer, tornou-se a imagem de Berta, e não se cansava Brás de o repetir, não por palavras, mas por acenos com os meneios mais extravagantes.
Dias depois, chamando-a ele pelo nome, a menina respondeu-lhe:
— Não me chamo mais Berta; meu nome agora é Til.
— Hanh!... fez o idiota com essa interjeição ou bocejo, que na sua bruta linguagem exprimia uma interrogação embasbacada.
— Til!... tornou Berta com a pronúncia clara e vibrante.
Forcejou o infeliz para articular o monossílabo; mas só a custo, e ajudado por Berta, o conseguiu. Causou-lhe isso tão intenso prazer, que a todo o instante proferia o nome, e amiudando-o trinava com ele, a modo dos pássaros, quando em seu crebro gorjeio repicam a mesma nota.
Assim identificada com a carta pela estranha afinidade que inventara a estultice do menino, Berta recobrou a esperança que já a ia abandonando.
Um dia, Brás com violento esforço e após funda concentração, arrancou dos beiços grossos e flácidos estas palavras truncadas:
— Brás... bem Til... muito... muito!...
Sorriu-se Berta, e agradeceu-lhe com um carinho.
— E Til?... interrogou o idiota com um olhar ansiado.
— Til quer bem...
Com um repente, mostrou-lhe Berta a carta, pondo o dedo sobre o a.
— A este!...
Pela primeira vez reparou o rapaz na forma da letra, que se lhe gravou na memória.
— Hanh?... tartamudeou ele ofegante.
— Afonso!
Arreganhou-se a estólida cara do idiota na terrível catadura de um sabujo em furor. Arrebatando o abecedário da mão de Berta, despedaçou-o para arrancar o a, que trincou nos dentes com sanha.
A princípio atemorizou-se a menina; mas logo, revoltando semelhante fraqueza as energias de sua alma, tranquilamente e com ar de indiferença observou aquela cólera brutal, que atingiu a maior exasperação.
Como se esperasse justamente esse momento culminante do acesso, chamou Berta o idiota para junto de si, com um aceno; e bastou-lhe pousar a mãozinha afilada sobre o ombro para aplacar-lhe a exacerbação.
— Til gosta deste!
Estas palavras, disse-as a menina mostrando com a unha rosada o b, e repassando-as de uma voz tão doce, que derramou na alma ulcerada do mísero um ignoto consolo. Voltou ele para Berta os olhos baços, que iluminaram-se com um reflexo vítreo.
Compreendeu Berta a muda interrogação, e a satisfez.
— É Brás!
— Til?... balbuciou a voz trôpega, enquanto o dedo convulso apontava a letra.
— Sim! disse Berta.
Caiu Brás em um novo acesso, porém este de alegria, que chegava ao delírio. Atirando-se ao chão, estrebuchou de prazer, soltando gritos descompassados e risos sibilantes, que mais pareciam guinchos de um animal bravio.
Assim em torno dela, que era o til, Berta foi engenhosamente agrupando todas as letras do alfabeto, com os nomes das pessoas e objetos que a cercavam. Pondo em jogo as broncas paixões do idiota, e colhendo os rudes germes de ideia que se formavam em seu bestunto, obteve ela afinal transformar a carta do abecê em uma família, em um mundo, para a existência enfezada dessa mísera criatura.
Ao cabo de um mês, conhecia Brás todo o abecedário. Que inauditos esforços de paciência, que sublimes intuições não foram necessárias para vencer esse impossível!
Só Berta o poderia conseguir. A fascinação que exercia sobre o idiota era uma sorte de encanto e magia. Sua vontade movia aquele corpo, como se fosse o espírito que o animava. Brás sentia e pensava unicamente pela alma dela, que lhe transmitia as impressões no olhar carinhoso, na voz suave, no sorriso fagueiro.
Dir-se-ia que se tinha operado a misteriosa transfusão d'alma do anjo na grosseira bestialidade do monstrengo. Quando nos acessos epilépticos, estrebuchando o infeliz em medonhas contorções, não bastavam as forças de três homens possantes para sopear os ímpetos formidáveis, nem as mais enérgicas aplicações para superar a crise violenta; o simples toque dos dedos de Berta ou sua fala maviosa, subjugava aquele furor, e aplacava logo a horrível convulsão.