Sentado o Brás num torrão de argila, que esbroara da barranca, entregou-se a uma singular ocupação.
Tirou do seio um embrulho de folhas de inhame, onde prendera uma boa porção de gafanhotos, que poucos momentos antes apanhara a devorarem um arbusto. Espetando cada qual em um espinho de juçara, fincou-os no chão, diante de si, até o número de seis.
Terminada esta operação, começou o sandeu a ranger os dentes, espumando de raiva e ameaçando os insetos com os punhos crispados. Enquanto se desarticulava nessa furiosa gesticulação, escapavam-lhe dos lábios sons estranhos e guturais como o grunhido de um porco, ou o ganir de um cão.
As pupilas vítreas esbugalhavam-se com as contorções da fúria brutal que lhe contraía os músculos faciais. Eram as fosforescências de um ódio violento, que iluminavam de reflexos lívidos esse olhar, de ordinário morno e fusco.
Afinal tomado de um acesso de ira, saltou o idiota sobre uma pedra, e com ela esmagou freneticamente, um a um, todos os seis gafanhotos. Não contente com este suplício, ainda por cima trincou nos dentes a cabeça daqueles que tinham sido poupados por seu açodamento.
Ofegante, exausto pela violência das emoções, mais do que pela exerção das forças físicas, prostrou-se por terra e aí ficou por algum tempo arquejando.
Era o desgraçado menino um estranho aborto da natureza. De todo bronca e estúpida, tinha contudo essa monstruosa organização bem vivo e patente o instinto do mal. Parecia que o aleijão, privando-a da alma racional, não reduzira só o homem à condição de bruto, mas o tinha logo demudado em fera.
Até conhecer Berta, o único vestígio humano que havia nessa bestialidade, era o ódio. Aborrecia a toda a criatura racional, talvez por uma confusa percepção de sua deformidade e estupidez.
Depois que o desvelo da menina lhe inspirara a fúria amorosa, transformara-se em profundo rancor a repugnância que ele sentia por todos; e tal fora o choque produzido por estas paixões, que acendeu uma centelha nas trevas daquele espírito embrutecido.
Desde então houve nessa animalidade um impulso que não era idiota; e foi o ódio. Estúpido em tudo, parvo até nos ímpetos da cega dedicação que votava a Berta, mostrava para o mal uma astúcia e perspicácia admirável. Incapaz de conceber uma ideia, maquinava pacientemente uma vingança terrível. À sutileza do reptil venenoso, reunia a sagacidade do guará.
Os insetos figuravam as pessoas que mais odiava, e a quem ruminava exterminar, espreitando a ocasião de levar ao cabo a feroz maquinação. Enquanto não chegava o momento, divertia-se com aquele sinistro folguedo.
Surpreendido quando chegava ao sítio habitual, e obrigado a esconder-se, ouvira a trama do Barroso, que o alegrou a princípio, porém agora o contrariava pelo receio de perder a sua maldade.
Sacando do socavão um pedaço de arco de barril que afiara a ponto de torná-lo em punhal, ocultou-o no bolso do jaleco; depois do que desapareceu um instante do lado do brejal, e voltou com um sapo que atirou junto ao buraco da casa de cupim, debruçando-se em cima dela, à espreita.
Imediatamente ao grasnido do anfíbio, apareceu no buraco a enorme cabeça de uma cascavel, que fitou no sapo a pupila cintilante.
Desde muito tempo cevava aquela serpente, que entrava no seu plano. Com uma forquilha, da posição em que estava, facilmente conseguiu prender a cabeça da vípera e agarrando-a pelo colo sem importar-lhe a sanha com que ela silvava, estorcendo a cauda e açoutando-lhe o rosto, deitou a correr por dentro do canavial.
Chegado que foi junto à casa, trepou a uma jabuticabeira para alcançar o peitoril da janela, cuja vidraça estava erguida, mostrando entre as cortinas de cassa uma linda cama de mogno coberta por colcha de damasco azul, um toucador, guarda-vestidos e outros móveis da recâmera de uma senhora.
Era a alcova de Linda. A mão perversa do idiota arremessou a cobra, que foi cair justamente sobre a cama e depois de aplacada a fúria, encolheu-se entre as rendas dos travesseiros, com a pupila em sangue e o bote armado.
Acabava o idiota de preparar assim o primeiro ato da obra de extermínio, que ele ruminava em sua feroz estultícia, quando o fez estremecer a voz de Berta que se encaminhava para a alcova.
Luís Galvão havia chegado. Ao avistá-lo as meninas tinham descido do mirante a correr para chamar D. Ermelinda e irem ao encontro do fazendeiro. Também acudiram para tomar a bênção ao senhor os escravos empregados no serviço doméstico, e alguns dos que não trabalhavam na roça, mas andavam por perto nas tulhas e fábricas.
Entre estes distinguia-se um inválido, curvado como um arco de pipa, com a cabeça lisa como um quengo, e o queixo fino como uma faca desdentada; pelo que o chamavam de Pai Quicé. Era ele um dos favoritos de Berta, que todos os domingos lhe dava um vintém para fumo.
Depois de salvar ao senhor, Pai Quicé que ainda não tinha visto Berta naquele dia, fez-lhe muitas festas como sempre, e começou a costumada e interminável lenga-lenga, com que a menina muito se divertia.
Berta era curiosa, e pois gostava de saber de tudo quanto se fazia ou falava por aqueles arredores. O negro velho que não tinha outra cousa para dar à sua gentil protetora, trazia-lhe quanto mexerico e história ouvia pelas vendas, onde graças à liberdade de traste inútil, passava a maior parte do tempo.
— Nhá moça, sabe? Aquele homem muito mau, que mata gente, o Bugre que foi aqui da fazenda?...
— Que tem? perguntou Berta, cuja atenção foi excitada.
— Vão prender ele.
— Quem te disse?
Contou o negro velho o que ouvira ao Gonçalo junto à venda do Chico Tinguá, e o mais que dos ditos de outros e de sua própria astúcia colhera posteriormente. Era naquela tarde que o Pinta ficara de guiar Filipe ao escondrijo do Bugre.
— E você sabe onde ele está? perguntou a menina com vivacidade.
— Sabe, sabe; Quicé sabe.
— Onde é?
— Quicé mostra o caminho.
— Pois vai indo que eu já te apanho.
Este rápido diálogo travara-se no meio do terreiro. Entrando em casa, viu Berta a amiga na sala e perguntou-lhe:
— Onde deitou meu chapéu, Linda?
Foram estas palavras que estremeceram Brás, e ainda mais quando ouviu a resposta de Linda.
— Em cima de minha cama.
Apoderou-se a vertigem do idiota, que tombou da árvore ao chão. ==Página:Til (Volume I e II).djvu/361==