Não se pinta a exacerbação de Bugre quando sentiu que lhe escapara o assassino de Besita.
Estuava-lhe a alma. Entrava na venda para matar a sede que o abrasava; mas a cachaça parecia-lhe chilra e insípida como a água do brejo. Sangue era o cordial que podia mitigar-lhe esse fogo intenso a lavrar-lhe dentro.
Queria brigar; tinham medo e fugiam dele. Matar a frio, maquinalmente, como o carniceiro faz à rês, e o caçador à perdiz, isso não o poderia; repugnava-lhe; tinha nojo ao cruor.
Foi nestas condições que um ricaço, informado da valentia de Jão, o tomou para capanga; e bem precisava ele, que não lhe faltavam inimigos. O preceito do Evangelho é "não fazer aos outros o que não queremos nos façam". Daí tinha o mandão extraído uma regra para seu uso, a qual em sua opinião, era apenas o complemento da máxima cristã. "Façamos aos outros o que eles nos pretendem fazer", dizia ele; e sem o menor escrúpulo, com perfeita serenidade de consciência, ia aviando os seus inimigos, para não lhes morrer às mãos.
Eis o homem a cujo serviço esteve Jão durante algum tempo, não só pela necessidade de ganhar a subsistência, como pela ânsia de saciar a sanha terrível que o devorava. Fez-se instrumento da perversidade do mandão; mas essas vinganças não eram senão brigas e combates, em que ele barateava sua vida, ansiando pela morte, que se obstinava em poupa-lo.
Sujeito que fugisse e se amedrontasse, não lhe tocava Jão, qualquer que fosse a recompensa ou ameaça do amo. Mas também quando se enfurecia, nada aplacava essa alma calcinada pelo fogo surdo que lavrava desde a morte de Besita.
Referiam-se desse homem as maiores atrocidades; e a alcunha de Jão Fera que lhe tinham dado por esse tempo, bem revelava a profunda impressão produzida na gente do lugar pelos fatos que ele praticara. Alguns não se explicavam, a não ser pelo delírio sanguinário que se apodera de certos homens, e não é talvez senão a exaltação do hábito levado até a mania.
Chamado, pago e protegido por homens poderosos para escolta-los em aventuras e servir às suas paixões, o Bugre recebeu a iniciativa e a animação que iam acostumando seu braço a ferir e a repousar depois do crime, como se tivesse praticado uma honrosa façanha, uma valentia digna de louvor.
Esta é com pouca diferença a história de todos os assassinos incorrigíveis, que infestam o interior do país. Eles foram educados pelos poderosos como os dogues que se adestravam antigamente para a caça humana, dando-lhes a comer, desde pequenos, carne de índio.
Durante o tempo que serviu como capanga a diversos patrões, não esqueceu Jão os dois pensamentos únicos de sua vida, ou antes único pensamento que se dividira agora em dois cuidados.
Era Besita que lhe deixara em legado, vingar sua morte, e proteger sua filha.
Não se passava um dia sem tirar Jão inculcas do Ribeiro, esperando que fizesse o acaso o que não pudera toda a sua diligência. Também de tempos em tempos vinha às ocultas até Santa Bárbara para ver Berta; e então sempre lhe trazia algum enfeite e deixava na mão de nhá Tudinha dinheiro para comprar-lhe o necessário, de modo que andasse bem pronta e arranjada.
Berta a princípio não queria saber daquele homem triste e carrancudo. Quando nhá Tudinha a levava pela mão até o mato, onde ele as esperava para não ser visto, a menina tinha medo. Mas a pouco e pouco foi se habituando, e afinal sentada em seus joelhos brincava com a faca de ponta que lhe tirava da cinta e arrepiava-lhe a barba ruiva.
Tinha Berta as feições da mãe, e Jão via com enlevos, travados muitas vezes de um terror supersticioso, surgir pouco e pouco do vulto da menina a imagem rediviva da mulher, a quem adorara como uma santa, embora tivesse amado também com a fúria de um possesso.
Quando já tinha Berta seus doze anos, e no corpo infantil iam se esboçando os relevos graciosos e suaves contornos da estátua feminina, deixava-se o Bugre ficar longas horas em muda contemplação, com os olhos pasmos na menina, que brincava pelo campo sem dar-lhe atenção.
Havia então singulares alucinações na alma desse homem. A paixão que jazera recalcada por tantos anos no fundo de seu coração, irrompia-lhe de novo com ímpetos medonhos, semelhante a um tigre sedento que se arroja contra a jaula para despedaçá-la.
Berta lhe pertencia. Não pela mesquinha razão de a ter salvado, mas pela consagração das angústias que sofrera. Ela era filha de sua dor; quando o pai a desprezara, abandonando a infeliz mãe, ele as envolvera ambas em uma ardente e incessante dedicação. A alma se lhe estancara nessa paixão imensa; carecia pois de orvalhos para umedecer a terra sáfara e exausta, que era sua existência agora.
Afigurava-se à sua mente enlevada, que Besita revivera na filha para pagar a ele Jão os extremos do puro e humilde afeto. Enleavase nas cismas de outros tempos e surgiam-lhe os sonhos que fizera outrora, os devaneios da vida feliz, no seio da floresta, longe do mundo que o perdera. Seu amor era infindo; chegava para encher o deserto.
Todavia o olhar da menina o turbava, e desde muito tempo já não se animava ele a sentá-la nos seus joelhos, como dantes. Se acaso Berta lhe fazia um afago, ao contado da mão mimosa o sangue espadanava-lhe do coração como lavas; mas logo refluía, gelado por um calafrio glacial.
Já não era Berta que ele via e sentia, mas o vulto de Besita, surgindo triste e lacrimosa para defender a filha.
Nos arrancos e embates dessa luta correu a infância de Berta.
Havia um ano deixara Jão o ofício de camarada; e vivia oculto nas vizinhanças de Santa Bárbara, onde facilmente via Berta e lhe falava. Cessando a proteção que os potentados costumam dispensar a seus asseclas, e a imunidade de que os revestem, começou logo o Bugre a ser perseguido como um flagelo.
Mas até então zombara de todos os esforços, apesar de prosseguir em suas façanhas. Raro era o mês no qual não se consumava pelos arredores alguma vingança; e o instrumento era quase sempre ele, Jão Fera, a quem buscavam de preferência para esta tarefa, pela fama terrível que tinha adquirido.